António Guterres, um dos mais bem-sucedidos políticos da sua geração, tomou o poder a 28 de outubro de 1995, quando estavam resolvidos os dois principais problemas do regime implantado em 1974. Em meados dos anos 1990, a democracia encontrava-se já bem solidificada e Portugal participava com naturalidade na CEE. Realizados ambos os desideratos, coube ao novo Primeiro-Ministro definir a terceira estratégia nacional.
Esta baseou-se numa ideia simples: esquecendo o interesse nacional e as grandes linhas do progresso, a governação ia dirigir-se aos benefícios das corporações dominantes na sociedade portuguesa. Pensionistas, funcionários, grupos profissionais, autarquias foram identificados como o verdadeiro propósito social, dirigindo para eles recursos e retóricas. A prioridade seria a classe média, que elege, à custa dos pobres sem voz e dos ricos que investem. Há 30 anos essa é a trave-mestra da governação. A democracia esclerosou-se, com interesses sobrepostos ao bem comum e à dinâmica coletiva.
Este modelo garantiu 20 anos de poder ao Partido Socialista nas últimas três décadas. A primeira encarnação da orientação implicou uma dívida galopante, que rebentou em 2011. Mas a partir de 2015 o modelo regressou, agora com um pequeno ajustamento, a que se pode chamar a “variante Centeno”, garantindo o equilíbrio orçamental. O ingrediente secreto, proclamado como genial, resumia-se à subida da carga fiscal e descapitalização do sistema público, assim libertando recursos para manter as benesses prometidas.
Esta orientação estrangulou o crescimento e bloqueou o desenvolvimento, mas, além de grande versatilidade e durabilidade, foi também muito popular. Os partidos da oposição e a própria opinião pública, estão hoje convencidos que a finalidade central da política é subir pensões e salários e distribuir regalias, sem tratar do progresso. A maioria dos programas apresentados às últimas eleições proclamou a continuidade do modelo Guterres.
Só que, bem ou mal, isso não será possível. A razão pouco a tem a ver com a situação política e a partição do Parlamento. Deriva do facto de o mundo ter mudado drasticamente nos últimos tempos, com cinco novidades que impedirão aquilo que foi prometido na campanha eleitoral.
A primeira é a guerra. Os 75 anos de paz no Ocidente acabaram e o mundo entrou num novo período de crescente conflitualidade. Com elevada probabilidade, as forças armadas portuguesas entrarão em combate nos próximos anos em um ou mais dos teatros potenciais. Não estão preparadas para tal. Impõe-se um crescimento desmesurado das despesas militares, atualmente residuais no Orçamento de Estado.
O segundo elemento são os desafios ambientais, sobretudo na área da energia. Para existir alguma possibilidade, não de cumprir, mas ao menos de não falhar gravemente os compromissos assumidos na descarbonização, serão também exigidas reformas massivas, na nossa vida pessoal, nas casas, empresas e até no funcionamento das grandes infraestruturas. Tudo isto exigirá enorme atenção das autoridades e forte dispêndio de recursos.
O terceiro aspeto é a decadência demográfica, que mudará o país como o conhecemos. Com uma das mais baixas taxas de fertilidade do mundo e 24% da população acima dos 65 anos, que se prevê que suba para 34% em 2070, Portugal precisa de fortes ajustamentos simplesmente para funcionar. Usando imigrantes ou robôs e subindo drasticamente a fatura da saúde, num mundo mais atreito a pandemias, a realidade futura não se comoverá com tolas promessas eleitorais.
O quarto aspeto é a degradação da globalização e a subida do protecionismo, que empolarão custos e afetarão produtividades, tornando inacessíveis muitos produtos a que nos habituámos.
Finalmente, todos os setores da sociedade e da economia vão ser fortemente afetados pelas tecnologias florescentes. No campo digital, financeiro, médico, económico e social, vamos viver em breve aquilo que hoje ainda parece ficção científica. Os recursos necessários para a transformação, qualquer que ela seja, serão retirados às rendas e privilégios de classe.
Nas últimas décadas, Portugal assumiu a opção de se sentar no muro, assistindo de longe à mudança mundial, sem realmente participar nela. A prioridade do aparelho Estado era, não governar o país, mas meramente perpetuar-se no poder repartindo os frutos que a prosperidade ia libertando. Esse mundo chegou ao fim. As evoluções recentes, a vários níveis, vão atingir o nosso muro, obrigando-nos a enfrentar os problemas novos, eliminando alibis, falácias e expedientes que têm alimentado o discurso das elites nacionais.
O aspeto mais curioso deste processo é que uma das pessoas que mais tem apregoado as dinâmicas que vão inevitavelmente enterrar o velho modelo político de Guterres é o secretário-geral da ONU, António Guterres.