A imaginação do mundo foi incendiada a 30 de novembro do ano passado, com o lançamento do ChatGPT, o novo modelo de linguagem da OpenAI. Em poucas semanas milhões de pessoas usaram o site para obter os mais variados resultados, e outros tantos milhões inventaram, por si mesmos, as tolices mais mirabolantes para dizer acerca do tema. No meio da confusão, muitas vezes se perdeu o essencial, explícito desde o princípio.

Mais de 70 anos antes, em outubro de 1950, deu-se um acontecimento ainda mais marcante: o matemático inglês Alan Turing publicou na revista Mind -A Quarterly Review of Psychology and Philosophy o artigo “Computing Machinery and Intelligence”. Aí enfrentava abertamente a questão: “Podem as máquinas pensar?”. Ou, pelo menos, fingia enfrentar. O texto começava por assumir, com razão, que “isto devia começar com as definições do significado dos termos ‘máquina’ e ‘pensar’” (op. cit. 433). Só que, inopinadamente, esta tarefa essencial ficou omissa, pois o assunto mudou completamente. A ponto de, paradoxalmente, adiante já se dizer que a pergunta original é “demasiado insignificante para merecer discussão” (p. 442). É caso para perguntar então porque a levantou.

Os leitores ficaram, afinal, sem saber se as máquinas podem pensar pois, em vez disso, foram confrontados com o que ficou conhecido como “o teste de Turing”, e a que o próprio chamou “o jogo de imitação”: se um observador, fazendo perguntas atrás de uma cortina a uma pessoa e a um computador, não conseguir distinguir os dois, podia dizer-se que a máquina pensou. “Sugere-se tentativamente que a questão ‘Podem as máquinas pensar?’ deve ser substituída por ‘Existem computadores digitais que se saiam bem no jogo de imitação?’” (p. 442).

Claro que a sugestão de Turing foi entusiasticamente acolhida pelo sector, pois poupava o gigantesco trabalho filosófico que a sua tecnologia implicava. Só que esta opção expedita teve uma consequência devastadora: todo o trabalho daquilo a que se haveria de chamar “inteligência artificial” (IA) se ia desenrolar no campo da imitação, da ilusão, do engano, da mentira. O programa de investigação estava traçado; a única questão que, desde então, ocupa essa multidão de especialistas é a qualidade do embuste.

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Compreender este ponto é hoje absolutamente vital. Precisamente porque as técnicas conseguiram níveis espantosos de qualidade, estamos todos a ser crescentemente enganados. As redes sociais e videojogos, os anteriores sucessos da IA, são já plena prova disso. Do domínio das “fake news” aos avatares e pseudónimos, que as pessoas criam para serem quem não são, o elemento central de Twitter, Facebook, World of Warcraft, Final Fantasy e afins é realmente a falsidade. Crescentemente, as pessoas vivem num mundo de ficção, numa vida de imitação, como aquela que Turing imaginou.

Os “Large Language Models”, de que o ChatGPT é o mais famoso membro, levam esta ilusão um passo adiante. Formas de linguagem, que os algoritmos agora podem manipular, cortar, distorcer ou criar, incluem som, imagem e texto, além de inúmeras outros meios, como testes médicos ou escolares, radiografias ou reportagens, contratos e certidões, músicas e cotações financeiras. Agora não podemos confiar nos telefonemas que recebemos, nas fotos que vemos, nas mensagens ou notícias que lemos. Os ganhos potenciais são espantosos, mas existe uma vítima suprema de todo este processo: a Verdade.

Que podemos fazer acerca disto? Três coisas são indispensáveis. Primeiro, há que tomar consciência da realidade. Os programas e os robôs não são inteligentes; apenas imitam. Confiar-lhes as nossas vidas e decisões é mais estúpido que deixar o cão a tomar conta da casa. Esse, à sua maneira, é realmente inteligente.

Em segundo lugar não nos devemos escandalizar. Ataques à verdade existem desde sempre no nosso coração, e há séculos que a tecnologia os apoia. A imprensa, grande invenção da humanidade, serviu para fomentar heresias e mistificações, revoltas e revoluções, ditaduras e totalitarismos de todo o tipo. Rádio, cinema, televisão e internet apenas aprofundaram o processo. Vivemos simplesmente o nosso episódio desta longa saga de logros e burlas.

Finalmente, há que aplicar as cautelas e os remédios que há muito conhecemos, agora potenciados pelas novas tecnologias. Será preciso criar leis e instituições para proteger os cidadãos e castigar os abusadores. O mercado, usando as mesmas técnicas, vai gerar serviços de proteção, filtros de patranhas, certificações de autenticidade. Acima de tudo, cada um na sua vida, tem de conhecer os perigos, evitar falsificações e embustes e cuidar atentamente das fontes de informação. Tal como o século XVI teve de ignorar os panfletos subversivos e o século XX se proteger do telelixo e da dark web, também o nosso tempo vai aprender a viver com os novos perigos. Para isso será preciso apagar o incêndio da imaginação, usar a cabeça e serenamente aprender a desviar-se das consequências nefastas do sinistro jogo de Turing.