Os historiadores ocupam-se do passado, e das coisas como realmente aconteceram. Naturalmente discordam entre si sobre o que aconteceu realmente. Mas estão todos de acordo sobre duas coisas: que aquilo de que falam aconteceu, e de que já aconteceu, isto é, de que já acabou de acontecer. Para ganhar prática fazem muitas coisas diferentes, que vão desde aprender a ler documentos antigos até ir a jantares organizados por historiadores mais velhos. São, por assim dizer, historiadores deliberados; embora possam enganar-se sobre aquilo que dizem, não é por acaso que o dizem.

O público também tem vindo a desenvolver um certo interesse por história; interessa-lhes em primeiro lugar a sua própria história, que é aquela em que cada um encontra mais motivos de interesse. Aos nossos próprios olhos tendemos a passar o teste de Júlio César, e podemos sem remorsos adquirir a posição de objecto das nossas explicações. Júlio César falava de si na terceira pessoa do singular, mas o truque parece hoje escusado à maioria. Uma anedota, uma opinião, um encontro fortuito, e, como dizia o poeta, posteridade és minha.

Seria no entanto um erro pensar que este tipo de auto-história, ao contrário da dos historiadores, é deliberado; na maior parte dos casos é acidental e até fisiológico. Contar pequenas histórias, partilhar pensamentos, capturar imagens e ter opiniões sobre nós próprios e aqueles com que tivemos a pouca sorte de nos encontrar no arco dos nossos dias é um reflexo tão incorrigível como ficar com pele de galinha, ou admoestar crianças nos parques.

É errado pensar que os historiadores acidentais se limitam à introspecção para exercer o seu múnus. Pelo contrário, a geração por meios tecnológicos de opiniões breves, pensamentos partilhados, e imagens capturadas parece ser uma parte importante das suas actividades. Um dos meios que os historiadores acidentais mais usam é justamente a captura de imagens daquilo que lhes vai acontecendo. Apesar de o conceito ‘imagem do que me aconteceu’ não ser simples de entender, a tecnologia tem dado ao processo interesse estético: nunca como agora uma omelete teve tanto apelo, uma hiena foi tão mansa, ou um pôr-do-sol esteve tão bem iluminado. É assim possível dispor de excelentes retratos do que nos acabou de acontecer.

Tendo vantagens inegáveis, as acções dos historiadores acidentais têm também dois problemas, aliás relacionados: o primeiro é o de que passar tanto tempo ocupado a registar o que nos aconteceu pode dificultar que nos aconteçam outras coisas que possa valer a pena registar. O segundo, menos cómico, é o de que os historiadores acidentais, ao ocupar-se do seu passado com afinco, podem estar sem saber a antecipar a sua vida futura. Essa futura vida consistirá na preocupação constante com a história da sua vida: mesmo antes de lhes acontecer o que quer que seja já lhe terão tirado a fotografia; antes de começar a almoçar, já terão lavado toda a loiça.

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