Num sketch antigo dos Gato Fedorento, uma claque de seminaristas recusa-se a insultar o árbitro (perdão, o “senhor árbitro”) quando não concorda com as suas decisões. “O árbitro foi extremamente incorreto, ah pois foi!” é o grito de protesto máximo a que se permitem. Neto de Moura, juiz desembargador da Relação do Porto, exige da opinião pública – e pretende impor-lhe pela força dos tribunais – o mesmo padrão de crítica dos seminaristas. Os juízes já são irresponsáveis (no sentido em que não podem ser punidos pelas decisões que tomam). Este quer ser inquestionável. Intocável.
O mesmo juiz que encontra precedente bíblico para justificar um ataque a uma mulher com uma moca cheia de pregos quer impor agora aos cidadãos a lei da mordaça. O mesmo juiz que acha que furar um tímpano à pancada é coisa de somenos insurge-se agora contra os que justamente questionam a sua dimensão humana para o cargo e duvidam da sua capacidade de empatia – atributo indispensável a qualquer julgador. A Justiça tem entre os seus princípios basilares o da proporcionalidade. Ficam claras as noções de proporção e prioridades de Neto de Moura.
O seu advogado argumenta que a liberdade de expressão não “serve para tudo” e apoia-se na jurisprudência nacional que se opõe a essa ideia peregrina do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de que a liberdade de expressão é um dos Direitos do Homem. Diácono Remédios, aliás Ricardo Serrano Vieira, que revelou espírito idêntico ao do seu cliente em matéria de Direitos Humanos e respeito pelas mulheres, acha mais importante definir para todos nós o limite da crítica aceitável num Estado de Direito: “O que está em causa não são as críticas aos acórdãos do senhor doutor juiz, nós respeitamos quem tem um entendimento diferente do dele. Estamos a falar de factos que consubstanciam ofensas”. Magoar os sentimentos é portanto ilegal, o que coloca o limite da liberdade de expressão na claque dos seminaristas. É a jurisprudência Gato Fedorento.
Fedorento, sejamos claros, é este zelo com o estatuto dos poderosos e com o “bom nome” de quem pratica más ações – sancionadas neste caso até pelo granítico Conselho Superior da Magistratura, que não é propriamente conhecido pelo seu afã disciplinador. O que Neto de Moura pretende com esta anunciada chuva de processos é evidente: coagir comentadores, humoristas, políticos e jornalistas a viverem num clima de permanente auto-censura antes sequer que lhes ocorra escrutinar o trabalho do juiz e do poder judicial no seu conjunto – um escrutínio tanto mais necessário e fundamental à qualidade do Estado do Direito quanto estamos a falar de um poder que, justificadamente, não pode ser responsabilizado pelas decisões que toma nos casos concretos – mesmo quando julga segundo a lei, e a mentalidade, do Antigo Testamento.
Neto de Moura devia pendurar-se na irresponsabilidade do cargo e esperar que o esquecessem (ou aprender qualquer coisa, se não fosse pedir muito). Em vez disso, lança-se aos tribunais. Na verdade, o juiz não age em defesa dos seus direitos como cidadão, ou sequer dos seus privilégios como magistrado. O que ele aqui defende é o velho princípio do respeitinho – que em nada se confunde com respeito e é antes sinónimo de subserviência, de cabeça baixa perante o poder. Os processos cíveis por injúria – ou, coisa ainda mais arcaica, as queixas crime por difamação – são manifestações de uma cultura de poder imprópria de um Estado liberal, mais alinhada com o Estado Novo que morreu de velho mas deixou marcas: manda quem pode, obedece quem deve. Comam e calem. Ou, vá, critiquem mas com juizinho.
Não é a primeira vez que vemos isto. Muito do que passa por defesa da honra e do bom nome é o mero recurso a um mecanismo de bullying judicial para calar críticos, quase sempre de posição e recursos (económicos, sociais, políticos) inferiores aos do “ofendido”. Centenas (provavelmente milhares) de cidadãos que denunciaram situações de abuso e corrupção sabem bem o que isto é: por via de queixas crime por difamação e processos de defesa do “bom nome” tornam-se muitas vezes as primeiras vítimas dos alertas que, com sentido cívico, fizeram soar. Sócrates processou meio mundo. Armando Vara também andou nos tribunais a protestar pelo bom nome que conspurcava com os crimes que ia cometendo. Não deixa de ser curioso notar que o juiz tenha anunciado processos cíveis, pedindo indemnizações a quem o ofendeu, em vez de queixas-crime por difamação. Não só é potencialmente mais lucrativo para o seu bolso, como ele sabe bem que a jurisprudência no campo criminal tem evoluído, mercê das várias condenações do Estado português no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, um tribunal que não aceita a ideia de que os cidadãos de uma democracia aberta e pluralista querem-se como as senhoras que Neto de Moura preza nos seus acórdãos: caladas e obedientes.
Este juiz não serve, é certo, mas não é o único problema da Justiça portuguesa – quem nos dera! Nem é sequer o principal. A nossa legislação em matérias cruciais como a violência doméstica, os crimes sexuais, a corrupção e tantas outras é uma manta de retalhos cheia de buracos – resultado de abordagens desconexas, mal pensadas, sem análise sólida dos problemas e sem abordagens integradas de política pública para os resolver. Em cima disto, o Código do Processo Penal não consegue processar coisa nenhuma porque é um gerador permanente de pretensas nulidades e reclamações nas mãos de advogados caros que saibam manobrá-lo – consagrando uma Justiça para ricos bem relacionados e outra, mil vezes pior e mais dura, para pobres desgraçados.
O juiz da moca e da mordaça não passa de uma gota de água neste oceano. Mas a sua pretensão de intocável revela uma cultura cortesã em Portugal que é pura e simplesmente incompatível com uma democracia plena. Uma cultura de respeitinho pelos poderes estabelecidos (sejam quais forem os seus desmandos) que aliás explica muita da tolerância social e judicial para com a violência doméstica, ou com a corrupçãozinha dos caciques.
É isto que não pode continuar. Ao contrário do que ainda impera, ao cabo de 45 anos de democracia, o respeitinho não é muito bonito. Não é mesmo. E Neto de Moura ainda o é menos. Este juiz não tem lugar na magistratura. Mas se os seus acórdãos acordarem o país para o terrorismo silencioso da violência doméstica; e se a sua reação à crítica servir para acabarmos de vez com os privilégios de estatuto entranhados no nosso país, o magistrado da moca e da mordaça merecerá ao menos uma palmadinha nas costas quando finalmente o encaminharem para a porta da rua.
Presidente da associação Transparência a Integridade