1 É um tique compulsivo: em se tratando de Cavaco Silva, a esquerda, desunida, toca em uníssono a rebate e dispara. O toque perdeu potência, as armas enferrujaram, as munições estão fora do prazo, mas a esquerda é sobretudo isto: um descolamento da realidade como se pode ter da retina.

Apetece recomendar novo argumentário, mas é lá com eles. Um dia, a realidade que nunca deixa os seus créditos por mãos alheias, volta ao de cima (“elle revient au galop”) e impõe-se de vez.

2 Eu não sei se Cavaco Silva conhece uma frase de Ruben A que a lucidez do escritor transformaria numa descoberta: “em Portugal o óbvio é que é difícil”, (há muito que dei em fazer disto um mandamento). É verdade, o “óbvio” é-nos “difícil”, uma empreitada ciclópica, só arrancada a ferros. Claro que o ex-Primeiro Ministro e ex-Presidente não precisa de ler Ruben A, nem de como eu se ter apropriado da frase. Bastou-lhe olhar para o que está por aí politicamente e por isso me lembrei do Ruben. Talvez algo desapropriadamente, reconheço, mas foi-me irresistível: ou seja, das “óbvias” tarefas da governação – escolha, decisão, reforma, capacidade transformadora, garantia de cumprimento das responsabilidades do Estado (Saúde, Educação, Justiça) – qual não tem sido tão “obviamente difícil” de concretizar? Todas? Quase todas?

Não há um só português que não ache “óbvio” que as escolas devem abrir com o elenco completo dos seus professores; que não considere nada “óbvio” esperar longos meses por uma cirurgia; ou anos, por licenciamentos, autorizações ou assinaturas – seja qual for a sua natureza – para andar com a sua vida para a frente. Meros exemplos do que seria “óbvio”.

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Dessa constatação até à vontade de Cavaco Silva ser simplesmente “normativo” foi um passo. Escolheu dá-lo através de um livro. “Reflexão normativa” escreveu ele e é o que é. Experiência e observação: despachou perante dois Chefes de Estado, quando foi para Belém despacharam perante ele. E quando deixou funções, continuou a observar. (O que me permite dizer que nunca terá bem saído de cena.)

3 Quem diria porém que seria preciso lembrar normas, sublinhar referências, evocar usos e comportamentos ou insistir nos normais procedimentos de uma governação? Nunca falei sobre o livro com o autor mas o exercício não me pareceu ocioso. O gesto releva da pura liberdade de pensamento e memória o que não é pouco e é muito legitimo. Mas pode ter sido também para travar a temível consequência de um insalubre estado de coisas: uma espécie de acomodada instalação/aceitação dos portugueses deste estranho modus faciendi de entender a democracia, protagonizar a política, tratar da governação, interpretar a cidadania. Achando que é “assim”. Assim como aquilo a que estupefactos assistimos todos os dias; assim como as coisas que ouvimos ao mais alto nível do Estado português: uns comentando tudo a toda hora, com uma vertigem que também só pode ser compulsiva pela variada gama dos comentários; outros usando os cargos que tratam da saúde económica do país para as suas exclusivas ambições políticas (o último, Mário Centeno, que vergonha!) outros, confundindo a responsabilidade de governar com uma desresponsabilização onde se confunde o mau uso do poder de uma maioria legislativa com uma inexplicável mas continuada incapacidade de resolver, decidir, concretizar, melhorar, transformar. É isso: “o óbvio (é-lhes) sempre difícil”.

E noutro plano mas não menos grave haverá maior sinal de total indiferença e desrespeito pelos portugueses que precisam como pão para a boca da Loja do Cidadão e não têm sequer acesso a uma senha se não dormirem lá de véspera… porque “não há funcionários” quando a Administração abunda em funcionários públicos? Atender e cuidar seria obviamente isto. Tem sido?

4 Os detratores – sempre os mesmos, também aí poderia haver novidade, mas não – confundiram a experiência de uma longa vida política exitosa com “lições” mas como não parece terem lido o livro, omitem as vezes em que o autor – por exemplo – assume erros e enganos. Ou se apenas o folhearam (!) também não lhes interessou grandemente as pequenas histórias e lembranças que Cavaco trouxe, conferindo ao resto a moldura da verosimilhança e do “vivido”.

Um ministro que estimo, referindo-me os extratos que lera, classificou-os de “pueris”. Percebo: é a velha guerra dos intelectuais contra “o” outsider mais célebre da política portuguesa em 50 anos. Embora admita, confesso-o já, que alguns parágrafos vistos de fora e descontextualizados do todo, lhes surjam como algo pueris. So what? Convenhamos que haverá poucas puerilidade tão profícuas.

No mínimo devo ao ex-Primeiro Ministro um notabilíssimo lote de reformas dignas desse nome: reformaram mesmo. (Entre elas a de ter permitido que todas as críticas, soezes, chocarreiras ou de má-fé de quem não leu o livro, beneficiem hoje, graças a este ex-chefe do governo, de mais écrans e microfones para se exibirem, ao contrário do que ocorria antes dos seus governos.)

A esquerda – à falta de maior inspiração – esgota-se no sarcasmo; a direita toma boa nota; e a direita a quem a esquerda consente o direito de cidade (aquela do “ai eu por mim nunca fui cavaquista”) exibe um embaraço constrangido para esquerda aplaudir.

Não tem importância. Não será isto que fica.

Fica o que Cavaco Silva fez.

5 Sofisticada politicamente (e nada pueril…) foi a intervenção que o autor produziu na apresentação do seu livro. Durão Barroso que se encarregou de nos descodificar a obra, fê-lo em grande forma: candidatura presidencial oblige? (Tenho as maiores dúvidas, é o que me murmuram, mas não será disso que me ocuparei tão cedo.) Prefiro antes registar a articulação pessoal e política da dupla Cavaco-Durão: consideração recíproca e muito trabalho comum. Isso sim uma realidade. Há décadas que a observo. E que a vejo imutável.

6 E finalmente: tenho saudades do tempo em que um livro político, um debate, uma escolha, um comentário, suscitavam de facto a vontade e a curiosidade de neles participar com argumentos – de direita ou a de esquerda – e não adjectivações expeditas ou graçolas ressentidas. Hoje tudo é logo imediatamente sugado pelo ar do tempo e logo transposto para o episódio do dia e é a roda dessa “actualidade” efémera que se discute (?). E que depois se esgrime e conclui exclusivamente consoante campos e lados.

Lembro-me que já foi possível que nem sempre fosse assim tão pobrezinho.