No sábado, 26 de novembro, houve eleições locais em Taiwan. Os resultados evidenciam não só as fortes tendências autoritárias ainda presentes e firmes na ilha, mas revelam também a postura da população em relação ao seu futuro. Com Chiang Wan-an a sair vitorioso na corrida à presidência da câmara de Taipei, as próximas eleições legislativas estão abertas para o KMT formar governo e, em última análise, a aproximação à China continental é uma possibilidade plausível. De maior importância ainda são os resultados do referendo para reduzir o sufrágio legal dos 20 para os 18 anos de idade. Este referendo, que ocorreu simultaneamente com as eleições para escolher os líderes locais de cada distrito, revelou que o povo de Taiwan quer manter os 20 anos como a idade legal de sufrágio. Este resultado revela, portanto, a rejeição de um possível fator de demarcação da China continental: o argumento da integralidade e a importância dos processos eleitorais na identidade política de Taiwan.

Na mesma semana das eleições em Taiwan, a China continental atravessa um período de incerteza, tumulto e instabilidade. A voz popular é severamente reprimida e os direitos humanos negligenciados. Neste contexto é importante preservar a democracia. É sobretudo essencial que se demonstre o que está em causa, de onde vem a ameaça e como se combate. Ao analisar os resultados das eleições autárquicas em Taiwan, podemos formar uma ideia mais clara das suas implicações… e do que pode vir a seguir.

Os Resultados: Vitória do Partido nacionalista

Os resultados das eleições autárquicas em Taiwan revelaram uma grande perda para o Partido Progressista Democrata (DPP). Apesar do aumento do número total de lugares nas assembleias (em oposição ao KMT, que viu esse número total diminuir mais uma vez), o partido ganhou apenas 5 de 22 municípios, perdendo alguns dos territórios que tinha anteriormente conquistado ao partido nacionalista (KMT). [1] Não obstante, o DPP manteve a sua tradicional base forte no sul da ilha, nas cidades de Tainan e Kaohsiung, fenómeno que deu origem à expressão “越南方越绿” (quanto mais a sul mais verde), fazendo referência à cor que caracteriza o DPP. Esta lealdade ao partido no sul do país provém da insatisfação da população dessas cidades. Tainan e Kaohsiung, apesar do seu potencial, estão longe do centro económico de Taipei e, por isso, têm desinvestimento e são privadas de função mais ativa no âmbito nacional, fruto das políticas seguidas nos últimos 10 anos. Em contraste com esta derrota, o KMT manteve muitos dos seus centros de poder e reconquistou alguns municípios anteriormente perdidos. Este resultado foi especialmente coroado pela tradicional vitória do KMT na câmara municipal de Taipei, onde Chiang Wan-an (bisneto de Chiang Kai-shek e figura controversa nestas eleições) tomará posse como presidente da câmara.

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Em resposta à derrota do partido, Tsai Ing-wen, Presidente da República de Taiwan, demitiu-se como líder do DPP, atribuindo a derrota às falhas do partido em apresentar candidatos de qualidade e em responder às expectativas do público.[2] O DPP promete agora uma fase de introspeção, para perceber o que se passou, e como poderá sair vitorioso no futuro. Esta atitude não é apenas uma reação aos resultados das eleições autárquicas. Tsai Ing-wen e o DPP têm procurado defender a democracia a todo o custo. Uma das medidas para o fazer seria a mudança da idade de sufrágio dos 20 para os 18 anos.

Tsai e o seu partido têm lutado para enfatizar, perante o público taiwanês, a importância destas eleições e do referendo, para mostrar ao mundo como Taiwan defende a democracia. Demarcar-se da China, através da inclusão de mais 500 000 eleitores, graças à redução da idade mínima para votar, seria um forte argumento a favor da independência de Taiwan como um regime politicamente distinto do da China continental, e merecedor dessa legitimidade. [3] O referendo para a mudança da idade do sufrágio determinou que continuará a ser 20 anos, frustrando a esperança de que este argumento pudesse ser utilizado para defender a legitimidade de Taiwan. A vitória do KMT, um partido tradicionalmente defensor de relações mais próximas com a China e com raízes no continente, também demonstra a não preocupação do eleitorado com as recentes ameaças da China, que, após as eleições, já exprimiu oficialmente o seu plano para continuar a construir relações de paz com Taiwan, rejeitar o conceito de independência e impedir interferência internacional.

Num artigo anterior, mostrei a ligação (histórica) do KMT à China continental e como a figura de Chiang Wan-an encarna essa ligação por ser descendente de Chiang Kai-shek. Expliquei também o que significaria a vitória de Chiang Wan-an e o facto da presidência à câmara de Taipei levar, via de regra, à Presidência da República. [4]  Ora, sabendo que o Partido Comunista Chinês (PCC) apoia e investe em partidos que advoguem a aproximação à China continental em Taiwan, e que o PCC procurou influenciar as mentes dos eleitores através de investimento nas campanhas do KMT e em fóruns nas redes sociais, não posso deixar de me preocupar com o futuro da democracia em Taiwan. O pior não é que o PCC influencie os processos eleitorais em Taiwan, mas que, tendo em conta os acontecimentos recentes, o público apoie uma política de maior proximidade com a China continental.

Ao analisar os resultados eleitorais ao longo das últimas quatro eleições, podemos verificar como o número de assentos do KMT tem vindo a diminuir nos últimos anos, no entanto, têm ganho terreno nas cidades principais, e isto será um fator de grande preponderância em contexto de futuras eleições legislativas.

Comparação de resultados nas últimas 4 eleições autárquicas em Taiwan

Fonte: Comissão Central de Eleições

Repressão e Censura de um Lado, Democracia e Liberdade do Outro

Como tem sido amplamente noticiado pelos mídia, a partir do dia 25 de Novembro começaram a ganhar balanço manifestações em várias cidades chinesas. Um incêndio, que levou à morte de 10 pessoas, desencadeou a corrente de protestos. As vítimas não puderam escapar devido ao facto do edifício se encontrar (trancado) em isolamento, para combater a pandemia da Covid-19. [5]   Desde o início da pandemia, a China tem tido como objetivo seguir a sua a política de Covid 0. As medidas associadas a esta política servem para garantir que o país se mantém sem casos da doença, mas tem vindo a prejudicar a saúde da economia e a sociedade chinesa. Para fazer cumprir as regras de isolamento e restringir o contágio da doença, o governo chinês utiliza métodos de vigilância que invadem a privacidade da população. [6]  Alguns trabalhadores têm sido mesmo obrigados a dormir no seu local de trabalho, incluindo em fábricas e empresas, para que possam continuar a produzir sem contágio.

O recente incêndio levou a que alguns saíssem à rua para protestar contra as medidas, extremamente restritivas, de combate à covid-19, afirmando que estas medidas são exageradas e que põem em risco a estabilidade pessoal de todos. Entretanto, as manifestações cresceram e foram-se espalhando para outras regiões. As exigências também evoluíram, pedindo mudanças na forma de governo do PCC e, até, em alguns casos, a demissão de Xi Jinping. [7]  Em resposta a estas exigências, o PCC apertou ainda mais o seu controlo sobre o público, obrigando multidões a dispersar, revistando os telemóveis dos transeuntes, apagando fotografias que mostrem manifestações ou slogans contra o regime.

A importância destes acontecimentos, no atual contexto das eleições em Taiwan, é ainda mais marcante, quando a história partilhada entre a China e Taiwan é examinada. Estes dois estados são, por agora, distintos em termos de liberdade, direitos e garantias da população. Contudo, e apesar dos acontecimentos recentes e da evidência do regime opressivo do PCC, a população de Taiwan mantém o seu voto fiel ao partido que maior ligação tem ao governo opressivo na China continental. Num artigo anterior, dei a conhecer a luta pelo poder do território chinês entre o PCC e o KMT, e a história da formação do estado de Taiwan. [8] Mesmo tendo em conta esse legado histórico, e todas as diferenças entre as duas fações, ou mesmo considerando que imigrantes de áreas especificas da China povoaram a ilha de Taiwan, criando uma cultura distinta e própria, estas não são as razões pelas quais Taiwan pode, e deve, lutar pela sua independência.

A queda do regime ditatorial, e a transição para um governo com mais representação popular, fez de Taiwan um importante marco do funcionamento da democracia na Ásia. Como tal, esta forma de governação deve ser protegida e os seus valores defendidos. A democracia é, portanto, o melhor argumento da população de Taiwan para preservar essa mesma democracia. Esta é a única forma de impedir a interferência de um poder opressivo que pode vir a controlar o futuro da ilha. É essencial que as implicações dessa ameaça sejam compreendidas, e que se faça uso de todos os meios possíveis para mostrar que Taiwan deve permanecer livre.

[1] Hioe, B., (2022). “Once Again, KMT Scores Big in Taiwan´s Local Elections” The Diplomat
[2] (2022). “President Tsai Resigns as DPP Chairperson After Election Setback” Focus Taiwan
[3] Lee, Y., Wu, S., (2022). “Taiwan President Quits as Party Head after China Threat Bet Fails to Win Votes ” Reuters
[4] Dias, R., (2022). “Eleições Locais, que Atenção lhes Damos? Talvez Pouca…” Jornal Observador
[5] Feng, E. Folkenflik, D., (2022). “People Across China are Protesting for Democratic Reform and Easing Covid Controls” NPR

[6] Song, W., (2022). “What is China´s Zero Covid Policy, and What are its Rules” BBC News
[7] Yeung, J., Subramanian, T. (2022). “What´s Happening in China after Zero Covid Protests? Here´s What you Need to Know” CNN
[8] Feng, E. Folkenflik, D., (2022). “People Across China are Protesting for Democratic Reform and Easing Covid Controls” NPR