Dissolver o povo e eleger outro? A pergunta fecha um poema sintomaticamente intitulado “A solução” escrito por Bertolt Brecht no ocaso da sua vida, quando a revolta dos trabalhadores alemães contra o “governo dos trabalhadores” em 1953, na Alemanha de Leste, e a brutal repressão que se seguiu, o deixou dilacerado e confuso. É natural que, nos dias que correm, muitos também andem dilacerados e confusos, mas a sugestão de Brecht não era para levar a sério – até porque era dirigida ao dito “governo dos trabalhadores”.
Em dias complexos e imprevisíveis a prudência recomenda antes a humildade, a inteligência obriga-nos a fugir das ideias feitas e o mínimo de sensatez leva-nos a desconfiar de respostas simples ou de visões conspirativas. Pelo que, mesmo não sendo eu daqueles que pensam que o povo nunca se engana, continuo a pensar que residindo a soberania no povo temos de respeitar a sua vontade. E que se esta porventura é esdrúxula, então temos de tratar de compreender como se chegou a esse ponto e, depois, como se inverte essa situação.
Naturalmente que tudo isto se torna mais difícil quando explicam todos os males do mundo como se estes fossem fruto de maquinações ocultas (“Há uma conspiração de extrema-direita a nível internacional, muitíssimo bem pensada, bem planeada e que vem sendo executada passo a passo”) e se acha que se pode desafiar a natureza das coisas, como se a lei da gravidade não se aplicasse de igual forma ao algodão e ao chumbo (“O Facebook e o WhatsApp servem-lhes tudo de bandeja e levam-lhes as ovelhas às mesas de voto, como cordeirinhos dóceis ao matadouro”).
Estas duas frases são de Miguel Sousa Tavares (MST) e de um texto cujo título, Calem-se: o povo é quem mais ordena, é em si mesmo o reflexo da tragédia de um jornalismo e um comentariato que tem preferido meter a cabeça na areia em vez de tentar perceber e, sobretudo, de reconhecer que algumas das chaves de leitura que antes ajudavam a perceber o mundo têm hoje menos validade. Ou não têm mesmo validade nenhuma.
Valerá a pena explicar que Steve Bannon (o estratega da campanha de Trump) não teve nada a ver com a campanha de Bolsonaro? Valerá a pena recordar que as redes sociais começaram por ser óptimas quando ajudaram a eleger Obama, quando alimentaram a campanha de Bernie Sanders ou quando desencadearam a “Primavera árabe”, e só passaram a ser o diabo depois de terem sido utilizadas por Trump e agora por Bolsonaro? Julgo que não, que seria chover no molhado, e por isso não vou perder tempo por aqui. Vou ao fundamental.
E o fundamental por hoje é o corte entre aqueles que se viam como as elites capazes de iluminarem o povo e o povo propriamente dito. Foi para esse corte que João Miguel Tavares alertou no artigo que tanto irritou MST, como foi sobre esse corte que também refletiu de forma muito ponderada Helena Garrido.
Sousa Tavares recorre a um filme, de resto magnífico, “Os Despojos do Dia”, para ilustrar a sua tese sobre o papel das elites. O exemplo é infeliz – trata-se de uma defesa do poder da aristocracia por contraponto ao poder do povo ignaro – e a citação ainda mais infeliz é, pois no filme o aristocrata não faz apenas uma pergunta ao mordomo (protagonizado por Anthony Hopkins), mas sim três, e nenhuma delas é, como pretende MST, sobre inflação (há uma que é sobre o padrão-ouro). Enfim, detalhes, que só cito para que não fique fora do contexto a frase com que remata o texto, e que remete para a incapacidade do mordomo responder à pergunta que lhe era feita: “Só falta querer retirar o direito de voto àqueles, como eu, que sabem o que é a inflação mas não frequentam redes sociais”.
Partamos do princípio que MST também sabe o que foi o padrão-ouro e passemos à segunda parte, ao orgulho de não frequentar as redes sociais. Ao nojo de sequer abordar o tema. Ao orgulho de proclamar que nunca ali se foi.
De novo fujo ao tema de fundo: este artigo não é sobre redes sociais. É sobre não querer compreender, é sobre não querer sair das suas certezas confortáveis, é sobre não querer sequer escutar. E por isso é tão significativo termos alguém que acha que pode fazer-se ouvir ignorando uma das principais ágoras da actualidade, precisamente as redes sociais. Pior: alguém que não quer saber o que aí se diz, o que aí se comenta, o que se passa nesses lugares que são parte daquilo que é o espaço público dos nossos dias. É caso mesmo para perguntar se MST sabe o que é o WhatsApp e se já percebeu porque foi que o chefe de gabinete de Azeredo Lopes usou esta rede social para lhe telefonar a dar conta da combinação para a devolução das armas de Tancos. E se já reparou que estamos a falar precisamente da mesma aplicação que no Brasil foi tão utilizada pelos adeptos de Bolsonaro.
Felizmente a maioria dos jornalistas sabe que tem de estar onde estão as pessoas, e por isso não ignoram as redes sociais. Mais difícil é, muitas vezes, saírem do seu casulo de ideias feitas, do seu círculo de amizades em que todos dizem o mesmo e pensam o mesmo, ou simplesmente terem capacidade para perceber que há um mundo diferente do seu e dos grupos de pressão que têm acesso privilegiado às redações.
Aquilo a que chamamos populismos tem muitas origens mas por regra um ponto comum: um discurso contra as elites no poder. Elites políticas, as mais visíveis. Elites económicas, as que mais facilmente se gosta de atacar. Mas também elites comunicacionais. E se muitos líderes populistas procuram apresentar-se como falando “em nome do povo”, seja lá o que isso for, a verdade é que exploraram a sua oportunidade, ocupando-se por regra de temas ignorados ou subvalorizados por essas mesmas elites. As políticas mas também as mediáticas.
Quando hoje constatamos que muitas pessoas têm como primeira porta de acesso à informação as redes sociais – quando não mesmo a única porta de acesso –, quando verificamos que isso acontece mais entre os mais novos, quando vemos o espaço mediático a pulverizar-se, jornais a desaparecerem, canais de televisão a perderem audiência, não podemos colocar todas as culpas nas novas tecnologias e em novos hábitos de consumo de informação. A verdade é mais dura – e a verdade é que o jornalismo mainstream também tem sido um dos derrotados em muitas das eleições e referendos dos últimos anos, e poucos estarão dispostos a admitir que também as suas estrelas mediáticas se fecharam em torres de marfim com pouco ou nenhum contacto com os problemas das pessoas comuns, quando não vivem centradas em agendas particulares ou em activismos de trazer na lapela. Mas essa é dura realidade.
Portugal, país pequeno em vários sentidos, suporta mal a diferença – e o jornalismo não escapa a essa regra. No caso da eleição brasileira o que havia a fazer era tudo o que fosse possível para denunciar, ridicularizar, encurralar, se possível derrotar o candidato “fascista” Jair Bolsonaro, numa cacofonia de que era proibido sair. Pior: fora deste quadro tudo o que fosse procurar perceber o que conduzira o Brasil à escolha entre dois males maiores não importava – era colaboracionismo. E foi com esta narrativa no subconsciente que se fez a maior parte da cobertura da campanha na maioria dos órgãos de informação, com raras e honrosas excepções. Os prevaricadores foram levados para o pelourinho dos fazedores da opinião dominante, e naturalmente que trataram de lá colocar o Observador. Os leitores fizeram o contrário: em Outubro o Observador teve o melhor mês de sempre em número de leitores e número de sessões.
De resto, faço só uma pergunta: quantos jornalistas já experimentaram falar com os brasileiros que vivem em Portugal e que, de forma esmagadora (cerca de dois terços), votaram em Bolsonaro? Já experimentaram perguntar-lhes o que acharam de muito do trabalho das nossas televisões? Garanto que seria instrutivo.
O que me faz regressar ao ponto de partida. Se não pretendo dissolver o povo, muito menos eleger outro, então tenho de o entender. Tenho de frequentar os mesmos locais que ele frequenta – físicos e virtuais. É que nada terei a dizer de útil se não entender porque é que alguns eleitores votam contra aquilo que penso serem os seus melhores interesses. Os deles e os da democracia.
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