Uma das notícias desta semana foi a suspensão da Rússia do Conselho para os Direitos Humanos das Nações Unidas. O Ocidente congratulou-se com mais um passo em frente no “isolamento internacional” da Rússia. No entanto, parece-me que esta suposta vitória diplomática tem pés de barro. Um olhar mais atento ao resultado da votação mostra uma realidade diferente.
Comecemos por recordar a votação da Resolução da Assembleia Geral de 2 de março que condenava a Rússia por invadir a Ucrânia. Apenas cinco países votaram contra (a própria Federação Russa, a Bielorrússia, a Coreia do Norte, a Eritreia e a Síria). Houve 35 abstenções, algumas de peso, como a da China, mas, mais importante, 141 países votaram a favor. Foi um protesto muitíssimo expressivo – histórico até – que indiciava de vontade internacional de que o conflito terminasse o mais depressa possível.
Volvido pouco mais de um mês essa maioria desfez-se. Não só o número de países que votaram a favor da suspensão da Rússia do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas diminuiu significativamente (foram 93 votos a favor) como as abstenções (58) e os votos contra (24) configuram uma nova distribuição de vontades na política internacional. Os 82 estados que não expressaram a sua posição contra a Rússia estão a mandar um sinal claro a Moscovo: podemos não gostar da invasão da Ucrânia, mas não estamos na disposição de isolar o Kremlin, como os países do Ocidente julgam que é necessário.
Entre esses estados estão a China (que votou contra), a Índia, o Brasil, a África do Sul e a Indonésia (que se abstiveram). Por um lado este grupo de estados é simbólico: se excluirmos Pequim os restantes estados foram tidos como democracias ascendentes nos anos 2000 e 2010, que alinhariam com o Ocidente. Lembram-se da ideia de que as democracias não lutam entre si e unem-se contra as agressões dos estados autocráticos como parecia provar a Tese da Paz Democrática? Por outro lado, estes países constituíram as alianças sul-sul que os uniram à Rússia nos anos 2000. Lembram-se dos BRICS? A tensão entre estas duas lealdades, quando elas têm realmente de se definir – e nada mais importante que uma guerra para que isso aconteça – não estão a pender para o lado das democracias. Afinal o “Ocidente Alargado” parece não ter tanta força como parece.
Agora examinemos os dois países que mais contribuem para o não-isolamento da Rússia: a China e a Índia. Pequim celebrou um tratado com Moscovo declarando uma “parceria ilimitada” exatamente 20 dias antes da invasão da Ucrânia. Já é pouco credível a versão de que Putin não tenha informado Xi Jinping dos seus planos. De uma forma ou de outra a “neutralidade pró-Russa” da China – para usar uma expressão de Evan Medeiros, professor em Georgetown – está a tornar-se cada vez menos neutra como mostra este voto. E enquanto a China apoiar a Rússia, Moscovo tem condições para continuar a sua ofensiva contra a Ucrânia.
Já a Índia – entre os Estados Unidos, dos quais se aproximou desde que Narendra Modi se tornou primeiro-ministro e a Rússia com quem tem um relação privilegiada desde os anos 1970 – não tem tido grande hesitações em apoiar, também discretamente, Moscovo. Não tem grande alternativa, aliás. Não só a Rússia é o único país com quem tem uma aliança permanente (e a memória histórica na Ásia conta muito), como a Rússia fornece cerca de 70 por cento do seu armamento. No pensamento indiano, é preciso uma Rússia forte para contrabalançar a China. Os Estados Unidos não são suficientes. Como escreveu Kenneth Waltz em 1967, as democracias até podem ter políticas externas diferentes de outros estados, desde que a sua sobrevivência não esteja em questão.
A China e a Índia tornam-se assim aliados importantes – mesmo que por omissão de condenação – da Rússia. O que mostra que não se trata apenas da quantidade de países que não estão dispostos a abandonar a Rússia (a maioria deles de perfil mais autocrático que democrático), mas a importância de alguns deles no sistema internacional em mudança. E ao contrário do que se veicula no Ocidente, não é certo que o equilíbrio de poder que vai sair desta guerra favoreça a liberdade.
Joe Biden referiu muitas vezes que havia uma batalha entre democracias e autocracias que não competiam apenas pelo poder e influência no sistema internacional, mas também pelos valores que regem as relações entre os estados. Parte do diagnóstico de Biden está certo: as autocracias apoiam a Rússia. Parte está em questão: nem todas as democracias apoiam o Ocidente, nem todas se afastaram de Moscovo. É fundamental, por isso, que se acabe com dois mitos. O mais importante entre eles é que a Rússia está isolada. Não só não está, como tem parceiros de peso. O segundo é o mito é que a ordem liberal prevalecerá. É possível e, do meu ponto de vista desejável, mas não é certo. Especialmente porque a abstração de Biden se tornou uma realidade: a China e a Rússia unidas contra um inimigos comum, os Estados Unidos, são uma força internacional que não se pode, de forma nenhuma, desprezar.