Nas últimas semanas assistimos a uma reviravolta na Guerra na Ucrânia. Perante a contraofensiva do exército do país invadido, que desencobriu a desorientação do exército invasor, o Kremlin decidiu-se por uma resposta de carácter político-diplomático com eventuais consequências militares.

Organizaram-se referendos nos Oblasts de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporizhzhia para consultar a população sobre a que país queriam pertencer – se à Rússia ou à Ucrânia. Sem surpresas, com a ajuda de soldados armados, urnas transparentes, boletins de voto que não foram dobrados e sem qualquer de observação internacional, os residentes de cada uma das regiões decidiram massivamente ser russos, em percentagem de 90 e muitos por cento. Estes valores não correspondem nem a uma eleição livre, nem às entrevistas de rua (que, é certo, não são amostra significativa) levadas a cabo por jornalistas de todo o mundo.

Com pompa e circunstância a Rússia anexou o novo território. Teve direito a tudo: festa de rua no Praça Vermelha, anexação ratificada pelas duas câmaras da Assembleia Federal, uma série de ordens executivas e um discurso breve, mas incisivo, em que Putin anunciou ao mundo que aquelas regiões passavam a ser parte integrante do território da Federação, e que a Rússia estava a disposta a recorrer a todos os meios para defender a sua integridade. Os governos dos países ocidentais e a Ucrânia disseram que não se intimidavam e agiram sem fazer caso da ameaça russa. E bem. Não é possível ter credibilidade nem dissuasora (no caso do Ocidente) nem ofensiva (no caso da Ucrânia) quando um dos beligerantes se encolhe ao som de ameaças. Assim, a contraofensiva mantém-se e avança mesmo em “território russo” e apesar dos riscos.

Importa ainda dizer que desde a recuperação ucraniana de Lyman, no Lugansk, um centro logístico estratégico para a Rússia, o discurso do Kremlin mudou. Foi uma mudança subtil, mas significativa: passou a versar sobre o “respeito” russo pelo povo ucraniano; com acusações de que Kiev quer desencadear uma guerra nuclear; um reiterado endurecimento do discurso antiocidental (que também indicia a inocência do povo ucraniano transformado em proxy de Washington, Londres e Bruxelas); e um enxovalho interno das elites ao Ministério da Defesa e aos Comandos Regionais, acompanhado da devida desculpabilização do Kremlin e do seu líder.

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Simultaneamente, pela primeira vez desde o colapso da União Soviética, a Rússia viu-se obrigada a desencadear uma conscrição que, por enquanto, atingiu 300 mil homens, mas que tem por trás uma ordem executiva que permite mobilizar muitos mais. Menos sublinhada, esta decisão é das mais arriscadas que o Kremlin tomou, uma vez que pode abalar – ainda que não seja para breve – as estruturas de poder de Vladimir Putin. Veja-se a fuga em massa das grande cidades, e as lágrimas dos mobilizados e das suas famílias, inconformados por terem de partir para uma guerra onde nunca pensaram combater. Mas se o uso de armas não convencionais parece cada vez mais premente, para quê arriscar na mobilização?

Todas estas mudanças apontam numa mesma direção: estão criadas as condições políticas para legitimar e materializar qualquer opção que a cúpula queira tomar. No Kremlin, a linha dura preconiza um ataque em larga escala, usando armas de destruição maciça, se necessário. Mas há uma linha mais branda que prefere deixar chegar o Inverno e a pausa por ele imposta para que as medidas de mobilização possam surtir efeito e permitam um reagrupamento e a continuação da guerra por meios convencionais.

Tornou-se lugar comum dizer que Putin se tornou muito mais perigoso. Que está “encurralado” e que a única possibilidade é fugir para a frente, provocando um ataque não convencional, que os especialistas militares desconfiam que será com armas nucleares táticas. E, de facto, este é o momento mais perigoso desde que a guerra começou e desconfio que não houve nenhum assim desde Crise dos Mísseis de Cuba. Mas também sabemos, como ilustra o episódio de 1962, que os líderes, por mais tensos que sejam os tempos, tentam evitar aquilo que, muito provavelmente, conduzirá à sua destruição. Putin não será uma exceção. Há um dilema sério no Kremlin.

A mobilização por um lado, e a integração de novos territórios na Federação Russa, com tudo o que isso implica, por outro, demostram que a Rússia se prepara para todas as eventualidades. A escolha decorre agora, nos corredores do Kremlin, provavelmente com a intervenção de atores internos e externos. Do que se passa pouco sabemos. Apenas que o Ocidente tem de continuar a constituir uma dissuasão credível, sem com isso provocar uma escalada da parte do Kremlin. Não é fácil? Não. Mas é a única opção possível perante a prontidão russa e a imprevisibilidade do processo de tomada de decisão.