«A floresta mantém uma tal carga emotiva e mítica no inconsciente colectivo que os argumentos usados na discussão do seu papel continuam notavelmente irracionais»
(Susane Daveau, citada por Dulce Freire)

Aquilino Ribeiro fez bem em pegar numa realidade e usá-la como matéria base para um romance.

Aquilino pega num facto real – a florestação da serra de Leomil, ou serra da Nave, que começa em 1954, e a oposição que gera nas populações –, para escrever um livro sobre a arbitrariedade do Estado, a dificuldade das comunidades se defenderem dessas arbitrariedades e a repressão a que um regime autocrático deita mão para impor as opções das classes dominantes.

Aquilino tem uma responsabilidade limitada sobre os muitos outros que pegam no seu romance para alimentar um mito a que chamam realidade, como se a situação retratada, e romanceada, fosse inteiramente factual e generalizável ao conjunto do país.

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“Para os que estavam na oposição, o romance “é a própria realidade”: um claro exemplo das imposições e injustiças a que o Estado Novo sujeitava a população. Para os engenheiros e outros funcionários ligados aos Serviços Florestais (SF), é uma ficção que por se inspirar num espaço e num tempo próximos induziu à formulação de juízos deturpados da acção destes serviços e conduziu a que se tomassem por gerais acontecimentos pontuais”. (Dulce Freire, “Os Baldios da Discórdia: As Comunidades Locais e o Estado”, 2004.

A leitura política do livro de Aquilino é cristalina para os contemporâneos de Aquilino (quer para o regime, que o censurou, quer para a oposição) e reflecte-se nas visões futuras sobre a florestação do país (ainda hoje o título deste texto se apoia nesse romance, apesar dos mais de sessenta anos desde a sua publicação).

“A luta dos camponeses contra o roubo das terras para a realização do plano fascista de “repovoamento florestal” abrange importantes sectores do campesinato em algumas regiões do país. Ainda há pouco, os «baldios», isto é, as terras cujo usufruto pertence colectivamente desde épocas imemoriais aos povos respectivos, ocupam mais de 400 000 hectares – quase 5% da superfície territorial do país.» (…) «Com a actual estrutura agrária, tirar os “baldios” aos povos serranos é dar um golpe mortal ao efectivo pecuário dos camponeses pobres, reduzir a sua já pobre vida a um nível de miséria, liquidar as pequenas explorações camponesas dessas regiões. Os planos de “repovoamento florestal” do governo fascista que fazem parte da sua cruzada de expropriações dos camponeses têm em vista o roubo em larga escala dos baldios para os transformar em florestas do Estado; apressar a proletarização dos pequenos agricultores que, sem os pastos naturais e as culturas nos “baldios”, se vêem forçados a trabalhar como assalariados nas terras dos camponeses ricos e nas novas florestas do Estado.” (Álvaro Cunhal, no seu prefácio à edição brasileira de “Quando os lobos uivam”, 1963).

Mais recentemente, já não como prefácio de uma obra literária, mas como artigo científico na área das ciências sociais, em 1983, a mesma visão desse mito político, é apresentada como uma visão objectiva da florestação do país.

“As resistências do campesinato à política de apropriação e florestação dos baldios surpreenderam os Serviços Florestais que, em contrapartida, retaliavam com todo o aparato repressivo à disposição (coimas, processos administrativos, encarceramentos, burlas, etc.). As resistências perduraram décadas, criando um clima de animosidade nas aldeias serranas ao norte do Tejo, e travaram pontualmente a execução do plano de florestação. Contudo, conforme a florestação progredia e a população ativa, sem opções, emigrava, as resistências foram decrescendo e a florestação via-se, cada vez mais, “livre para avançar” sem a “necessidade de se recorrer a esquemas repressivos” (João Antunes Estêvão, “A florestação dos baldios”, 1983)”.

Ainda hoje é possível ler, numa tese de doutoramento recente e premiada, uma explicação para o actual regime de fogo em Portugal que se baseia no mesmo mito, embora actualizado pela perspectiva woke.

“Os incêndios rurais estão em contínua recrudescência em Portugal. Eles resultam de uma dupla violência biofísica e sociocultural decorrente da reengenharia social promovida pelo Estado Novo através da florestação. Os incêndios, de hoje, são os efeitos diferidos dessa violência passada, eles são a materialização da slow violence cometida contra as populações serranas e suas paisagens”. … “A expansão florestal e a contração demográfica nas aldeias serranas ao norte do Tejo são dinâmicas contíguas, fruto da obra de reengenharia social e ambiental high-modernist do Estado Novo. Consideradas atrasadas e incapazes de manejar suas terras de forma racional, as comunidades serranas foram despojadas de seus baldios para que um uso mais lucrativo destes fosse feito. Assim, foi favorecido o desenvolvimento da indústria madeireira estatal nos baldios, em detrimento das atividades agropastoris comunais … “Se os incêndios rurais, em Portugal, resultam de uma violência degradadora contra uma paisagem cultural, o combate contra as chamas passa inevitavelmente pelo esforço reverso de restauração da paisagem em questão”. (Júlio Sá Rego, ““De sol a sol”: dois estudos pastoris de prevenção de incêndios rurais”, tese de Doutoramento em antropologia, ISCTE, 2021).

É verdade que pelo menos desde meados do século XIX, mas provavelmente já antes, há um braço de ferro entre fisiocratas – que desvalorizam as terras marginais, considerando que o bem comum exige que elas sejam produtivas –, e as comunidades rurais que vivem da terra.

Os agricultores sabiam bem que a fertilidade dos seus campos agrícolas dependia da capacidade de usar essas terras marginais como fonte de nutrientes, tendo como ferramentas essenciais o pastoreio e o fogo, dois inimigos tradicionais da floresta.

Os fisiocratas, focados em conceitos de bem comum e ciência cartesiana, como a erosão do solo, a correcção torrencial, a produção de longo prazo, têm dificuldade em compreender as razões de gente cujo conhecimento ancestral desvalorizam.

Tal como é fácil obter testemunhos, supostamente em primeira mão, sobre a libertação de lobos pelos serviços de conservação, coisa que nunca ocorreu em Portugal, é também muito fácil obter testemunhos coevos e em primeira mão da resistência dos povos à florestação.

Infelizmente é rara a atenção para esta observação de George Estabrook (tradução minha), apesar da sua sólida base teórica nos domínios da etnologia e antropologia: “É notável como o empirismo persistente dos seres humanos, que lutam para sobreviver na natureza, resulta em práticas que fazem sentido ecológico, mesmo que possam ser codificadas em rituais, ou explicadas de formas que parecem superficiais ou pouco convincentes do ponto de vista ecológico. Na verdade, os produtores podem ter conceitos, igualmente justificáveis, mas muito diferentes dos académicos, sobre o que constitui uma explicação útil” (Choice of fuel for bagaço stills helps maintain biological diversity in a traditional portuguese agricultural system”, 1994).

Que me lembre, a mais sólida aplicação desta cautela na interpretação do discurso tradicional sobre pastorícia em Portugal tem vindo a ser feita por Carlos Aguiar, sobretudo com base nas experiências de pastoreio no Alvão, seguindo o caminho de Estabrook: nunca desvalorizar a informação transmitida pelos pastores sobre as práticas tradicionais, não as tomando pelo seu valor facial mas como orientação para o desenho de investigação que nos permita por um lado compreender, por outro integrar esse conhecimento no sistema científico de base cartesiana e experimental.

Nada de novo, há muito que Claude Lévi-Strauss chamou a atenção para o percurso de “honesto estudo com longa experiência misturado” que é preciso fazer para ir do mito ao seu significado.

A ideia de que o país foi florestado por políticas públicas executadas pelo Estado parece-me ser o chão comum que impede os defensores do mito da resistência dos povos à florestação, mas também os defensores do mito da superioridade social do processo estatal de florestação, de passar do mito ao seu significado, ampliando a nossa capacidade de compreender os processos que se pretendem discutir.

Não há dúvida de que os dados são conhecidos, o que tem sido difícil é liquidar controvérsias inúteis que resultam de interpretações que esquecem a quantificação dos processos em discussão.

Por exemplo, Dulce Freire escreve, bem (não vale a pena discutir minuciosamente estes dados, grosso modo, traduzem a realidade, com a ressalva que o próprio parágrafo contém) “Nos anos 40 florestaram-se cerca de 40 mil hectares e nos anos 50 mais de 130 mil hectares. No total, de 1939 a 1960 florestaram-se 190 mil hectares. Comentando estes valores, a DGSFA esclarece que este número de «forma nenhuma significa que esta superfície esteja realmente recoberta de arvoredo, porquanto, são inevitáveis as falhas, devidas a causas várias, entre as quais sobressaem os insucessos das plantações provocadas por condições meteorológicas e as destruições causadas por incêndios e animais. Assim todos os anos se efectuam replantações e ressementeiras em áreas anteriormente trabalhadas”.

Havendo variações sobre estes números, esquecendo que parte desta florestação é nas dunas e não em baldios, poderemos tranquilamente falar de uns 300 mil hectares florestados pelo Estado, dando de barato alguma margem de erro (para o argumento é irrelevante se foram 200 mil ou 400 mil hectares florestados pelo Estado, apesar de ser uma diferença do simples para o dobro).

O que é verdadeiramente notável é que a área florestada pelo Estado seja tão poucas vezes posta no seu contexto: Portugal terá passado de um milhão de hectares florestados para mais de três milhões, ou seja, a área florestada pelo Estado, na base da qual se fazem discussões e interpretações mitológicas da resistência do campesinato ou da excelência do trabalho dos serviços florestais, dificilmente passa dos 10 a 15% da área realmente florestada no país.

Não são trocos, é um trabalho gigantesco, com certeza, mas que dizer dos dois milhões de hectares florestados pelas pessoas comuns à procura de uma vida melhor?

Como se podem sustentar interpretações mitológicas sobre o radical confronto de interesses entre as pessoas comuns e a florestação, quando foram pessoas comuns, com o seu esforço, que florestaram dois milhões de hectares do país?

Como se pode defender que a reabilitação dos serviços florestais e do peso político das opções florestais que existiram no Estado Novo – e que vinham de mais de um século antes, sopradas pelo iluminismo fisiocrata que deu origem ao cameralismo, que influencia fortemente a escola alemã de silvicultura, tomada por modelo em Portugal – seriam medidas razoáveis para uma gestão florestal ordenada e sustentável no país quando, mesmo com um Estado intervencionista, forte e repressivo, nunca se conseguiu ir além de 10% do peso do Estado na florestação do país?

Como se pode defender que é o restauro dos modelos produtivos que se opuseram à florestação que vai resolver o problema de gestão de fogo que temos, quando essa resistência, para além de relativamente pontual, diz respeito à oposição a muito menos que 10% da florestação do país.

Penso que foi a Américo Mendes que ouvi pela primeira vez a referência ao papel dos privados na florestação do país, quer apresentando gráficos muito convincentes da pouca área florestada pelo Estado, quer chamando a atenção para o facto da maior parte do valor acrescentado bruto florestal do país vir de zonas de minifúndio.

Não porque o minifúndio favoreça a gestão florestal, mas apenas porque há uma correlação estreita entre produtividade primária – isto é, a velocidade a que crescem as plantas – e dimensão da propriedade, o que faz com que as zonas mais produtivas sejam também aquelas em que predomina a pequena propriedade.

Talvez fosse tempo de reconhecer a aguda lucidez de Susane Daveau e deslocar as discussões sobre gestão florestal e gestão do fogo da emoção para a razão, reconhecendo que a produção florestal precisa, para que seja sustentável, de remunerar o capital e o trabalho das pessoas comuns.

A alternativa é continuarmos nas guerras de alecrim e manjerona, ora culpando as terras comuns, ora a dimensão da propriedade, ora os proprietários absentistas, ora o ordenamento do território, ora os incendiários, ora a ausência do Estado, ora os interesses privados, ora os intermediários (os intermediários, como o sistema financeiro, são sempre bons sacos de pancada, para quem não queira usar os judeus, os imigrantes, as mulheres, a degradação dos costumes, a libertinagem, para vender a banha da cobra populista).

Os resultados desta última opção são conhecidos: é o abandono que temos hoje.