Desde 1976 o PCP tem sido um dos principais defensores da Constituição. Esta defesa tem sido particularmente notada durante processos de revisão constitucional e nos momentos em que se fazem balanços. Quem nestas ocasiões ouve os comunistas é levado a crer que são eles os grandes obreiros da Constituição e que é a este partido que devemos a “mais progressista” lei fundamental. Acontece que antes e durante a sua concepção, várias foram as tentativas levadas a cabo pelos comunistas portugueses para colocarem em causa o processo que, como avisadamente temiam, colocaria em causa o monopólio da legitimidade revolucionária e daria espaço, ainda que pequeno, à legitimidade eleitoral.

A primeira tentativa para desvirtuar o verdadeiro significado das eleições para a Assembleia Constituinte passou pela defesa da ideia da participação directa de representantes do MFA na Assembleia. O PCP, os partidos da extrema-esquerda e importantes sectores do MFA defendiam, no final de 1974, que aos militares deveriam ficar reservados entre 10% a 20% dos lugares a ocupar pelos constituintes. É como resposta a este desejo, que os partidos à direita do PCP defendem a institucionalização do MFA. Esta era uma alternativa que, impedindo a participação directa do MFA na Assembleia Constituinte, garantiria a realização de eleições e a aplicação do Programa do MFA, através da celebração de um acordo prévio entre os militares e os partidos políticos.

Conseguida a ausência de constituintes fardados em S. Bento, o 11 de Março veio colocar novamente em causa a realização das eleições agendadas para o mês seguinte. Procurando não dar qualquer argumento àqueles que defendiam o adiamento ou mesmo o cancelamento das eleições, os partidos moderados aceitaram todas as alterações apresentadas pelo MFA no âmbito das negociações para a celebração do acordo que as viabilizaria. O MFA já não queria apenas garantir a sua institucionalização e modelar o desenho da futura orgânica constitucional, mas passara a defender “a continuação da revolução política, económica e social iniciada em 25 de Abril de 1974”. Caso os eleitores não reconhecessem em qualquer um dos partidos que se apresentava às eleições capacidade para empreender tal tarefa, elementos do MFA e mesmo do organismo encarregue de conduzir o processo eleitoral, a CNE, defendiam que o voto em branco tinha “sentido patriótico e significado revolucionário”. Já o secretário-geral do PCP esclarecia que as eleições não iriam decidir tudo, que eram apenas uma “experiência”, que visava eleger uma Assembleia exclusivamente eleita para elaborar uma Constituição e que estas nada tinham a ver com a formação e a política do governo.

Apesar destas vicissitudes as eleições realizaram-se e nem os apelos ao voto em branco ensombraram a vitória dos partidos moderados. Duas semanas depois do acto eleitoral, Vasco Gonçalves defendia no Conselho da Revolução que as eleições não tinham favorecido o processo revolucionário. Ainda nesse mês de Maio, também no Conselho da Revolução, Álvaro Cunhal, defendia que a dinâmica eleitoral estava a travar o processo revolucionário e a conduzir o país para um rumo que não era o que estava traçado. Na mesma ocasião, o líder comunista questionou a continuidade da actividade da Assembleia Constituinte, uma vez que esta tinha sido eleita com base no Pacto MFA/Partidos, acordo esse que, em seu entender, estava a ser colocado em causa pelo PS com o anúncio da suspensão das actividades dos seus representantes no governo. Cunhal voltou ainda a criticar a ausência de representantes do MFA na Assembleia Constituinte e sublinhou a necessidade de se evitar que o processo eleitoral contrariasse o processo revolucionário. Paralelamente, em público, proclamava que em grande parte do território não se tinham verificado “condições de real liberdade” e que por isso a votação não podia ser interpretada “como uma manifestação livre da vontade popular à escala de todo o país”.

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Nas semanas seguintes multiplicaram-se as acções a favor da formação imediata de um governo revolucionário e da dissolução da Constituinte. É neste período que dos meios militares brotam vários documentos programáticos onde se defende uma nova vaga revolucionária baseada em modelos de democracia directa: o MFA divulga o Plano de Acção Política (PAP), que relegava para uma posição secundária a Assembleia Constituinte; Vasco Gonçalves apresenta outro onde se defendia a construção de uma via socialista apoiada por uma vanguarda política; e o Gabinete de Dinamização do Exército elabora um terceiro, denominado Documento-Guia de Aliança Povo-MFA que, ignorando completamente a recém-empossada Assembleia Constituinte, apresentava um conjunto de acções que tinha como objectivo final a instauração do poder popular, através do desmantelamento do aparelho de Estado e da criação de uma nova estrutura de poder, constituída na sua base por comissões de moradores e de trabalhadores e que teria no seu vértice a “Assembleia Popular Nacional”. Este documento estipulava ainda que a partir do nível municipal, o MFA disporia de uma participação directa, através de representantes das Assembleias de Unidades dos três ramos das Forças Armadas.

Ao contrário dos partidos à sua direita, que não esconderam a sua oposição a estes documentos e projectos, o PCP, pela voz do seu secretário-geral em declarações ao jornal cubano Granma, admitia a possibilidade de uma intervenção dos militares “na aliança com o povo”, se fosse provado que em Portugal era impraticável uma coligação governamental, defendendo que “governo militar não significa necessariamente ditadura” e que os laços entre o “povo” e o MFA podiam “perfeitamente existir fora dos partidos políticos – através de organizações de trabalhadores ou de organizações e assembleias distritais”. Dias mais tarde, na célebre entrevista a Oriana Falacci, Cunhal afirmaria que em Portugal a opção passava pela escolha de um “forte governo reaccionário ou uma forte democracia comunista”, já que em seu entender as eleições não tinham “qualquer importância”, não se podendo reduzir a questão “a percentagens de votos recebidos por um partido ou outro”. E esclarecia: “se pensa que o Partido Socialista com os seus 40%, e o Partido Popular Democrático com os seus 27%, compõem a maioria, está a cometer um erro. Eles não têm a maioria”. No mesmo tom, o líder comunista afirmou: “A Assembleia Constituinte não será um órgão legislativo e certamente não será uma Câmara de deputados”.

Perante a aprovação pela Assembleia do MFA do Documento-Guia, e goradas as tentativas de afastamento de Vasco Gonçalves da liderança do governo promovidas pelo grupo de oficiais do MFA que se opunham ao modelo preconizado pelo Primeiro-ministro, os socialistas abandonaram o governo, sendo pouco depois seguidos pelos populares democratas. É a partir desse momento que ambos os partidos passam a empenhar-se na realização de grandes manifestações contra o executivo, designadas por Álvaro Cunhal como marchas contra-revolucionárias.

Estavam reunidas as condições para uma aproximação entre os civis e os militares que se opunham aos esquemas de democracia directa assentes numa estrutura piramidal de assembleias mistas e votações de braço no ar. É neste contexto que se dá o cerco à Constituinte, que com a introdução dos debates antes da ordem do dia tinha ganho no panorama político e mediático uma centralidade não desejada pelos adeptos da via revolucionária. Apresentado hoje por alguns como um mero protesto sindical, o cerco e sequestro dos deputados foi antes o reflexo de um confronto entre dois modelos distintos de organização política.

Deixando à extrema-esquerda o ónus do malogrado golpe de 25 de Novembro, os comunistas passaram a defender a Constituição que instituiu o regime representativo e pluralista que resultara de uma Assembleia cujo papel tinham menosprezado e cuja existência tinham questionado. Aquela que é hoje descrita e apresentada como filha dilecta é pois o fruto de uma gravidez não desejada, hostilizada e criticada.