Não, não me refiro ao museu que esteve para ser dos Descobrimentos, passando em seguida a Descobertas ou Expansão e posteriormente a Interculturalidade de Origem Portuguesa e que agora vai em Viagem. Daqui até que o dito museu veja luz do dia não duvido que outras polémicas surgirão pois é inevitável que tal aconteça quando em vez de projectarmos o futuro pretendemos refazer o passado.
Aliás, a prosseguirmos nesta senda revisionista o próprio conceito de museu será posto em causa: afinal, o que é um museu senão uma criação ocidental e dentro desta uma manifestação do gosto das classes dominantes? Como esquecer as galerias de arte dos Médicis e dos Papas? As colecções reais?… Bem vistas as coisas o melhor será nem se falar de museus, pois não só há povos que nunca sentiram a necessidade de construir museus como alguns até se sentem ofendidos com a musealização do seu património. (Para uma noite de insónia aconselho uma pesquisa sobre as reivindicações feitas a vários museus, em nome de algumas tribos de índios.)
Assim, proponho que deixemos de usar esse termo “museu”, eivado que está de preconceitos de uma sociedade machista, colonialista, racista e demais istas e passemos a falar de Local de Acumulação de Experiências e Artefactos. No caso concreto do que esteve para ser Museu dos Descobrimentos, depois Descobertas, depois Interculturalidade e depois Viagem proponho a seguinte designação que creio blindada a quaisquer suspeitas de supremacia cultural, racial ou outra, desde que se exclua a avaliação psiquiátrica: Local de Acumulação de Experiências e Artefactos do Fui Ali Num Instantinho Trocar Umas Ideias, Tratar de Uns Assuntos e Conversar um Pouco.
Mas enfim, deixemos o museu que ainda não existe e falemos do museu que não pode existir, ou seja, o Museu de Arte Popular (MAP). Na verdade, este museu existiu durante décadas e fechou não por falta de público mas sim por razões ideológicas: o Museu de Arte Popular sofria do pecado original de não só ter nascido durante o Estado Novo como, segundo o auto-de-fé ideológico que lhe ditou o fim, de ser um produto da propaganda do salazarismo. E portanto de nada valia a importância do seu acervo. Milhares de peças em que se contam arados, cabanas de pastores, teares, barros, linhos, bonecos de Estremoz, as estranhas figuras saídas das mãos de Rosa Ramalho, cestos, carros chorriões do Alentejo… tudo isso que não precisou de António Ferro para existir foi encaixotado e armazenado porque, nos idos dos anos 40 do século passado, o Secretariado da Propaganda Nacional transformou o que tinha sido uma secção da Exposição do Mundo Português no Museu de Arte Popular.
É caso para dizer, espantoso país este em que a sede da polícia política passou a condomínio de luxo e as alfaias agrícolas mais os lenços de namorados têm de dormir fechados numa cave porque, quando expostos no Museu de Arte Popular, davam uma visão bucólica da vida rural nos tempos do Estado Novo! (Não sei como conseguem essas almas farisaicas lidar com a visão folclórica da vida lisboeta transmitida pelas marchas populares, mais a problemática religiosa subjacente às noivas ditas de Santo António, mesmo que só casem civilmente, sem esquecermos que o património do Museu do Fado tem com que entreter por largos anos associações feministas, antropólogos, sociólogos e comissões de combate a isto e àquilo.)
Como é óbvio, o Museu de Arte Popular reflectia as condições do tempo em que foi criado. E obviamente a organização do seu acervo (e não o acervo propriamente dito) teve uma leitura política. Mas o seu encerramento foi tão político quanto a sua génese: o Museu de Arte Popular foi encerrado em 1974. Reabriu nos anos 80. Entretanto passou para a tutela do Museu Nacional de Etnologia. Conheceu tempos de enorme instabilidade. Voltou a ter um estatuto autónomo. Até que, em 1999, o Museu de Arte Popular encerra, primeiro parcialmente depois na totalidade por causa da degradação do edifício. É anunciado um plano para obras de fundo. Gastam-se 3,5 milhões de euros a recuperar o edifício do MAP.
Muitos terão acreditado que, tal como anteriormente, o MAP reabriria de novo para mais melhorado. Mas não foi isso que aconteceu: em 2006, a ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, anuncia o fim do Museu de Arte Popular naquela sucessão de lugares comuns triunfais que caracterizavam o discurso dos governos de Sócrates: “A vida dos museus não é eterna. Eles nascem, vivem e morrem. Não devemos estar presos a uma atitude conservadora. É preciso fazer opções quando se faz política cultural. Um museu da Língua e dos Descobrimentos é mais aberto e mais rentável.”
Os jornais davam como certo que o Museu da Língua e dos Descobrimentos ia estar a funcionar em 2008 nas antigas instalações do Museu de Arte Popular, cujo espólio começou a ser transferido para as caves do Museu de Etnologia. Por contraposição, o Museu da Língua e dos Descobrimentos era tão moderno, tão moderno não ia ter acervo físico porque era “meramente virtual”. Modesta, a ministra Pires de Lima acrescentava: “Fazer do Museu da Língua o mais visitado do país não é a nossa meta, mas queremos que seja um dos mais visitados de Lisboa”.
Nem muito nem pouco visitado, o Museu da Língua e dos Descobrimentos nunca foi construído. A única parte concretizada do anunciado Museu da Língua e dos Descobrimentos foi tão só e exclusivamente o encerramento do Museu de Arte Popular. A purga ao Museu de Arte Popular foi até ao ponto de em 2007 se revogar o despacho de abertura das diligências tendentes à classificação do imóvel do museu enquanto Imóvel de Interesse Público. (Seria preciso esperar por 2012 para que tal acontecesse.)
Entretanto, o acervo, o arquivo e a biblioteca do Museu de Arte Popular foram transferidos para as reservas do Museu de Etnologia. Oficialmente, a título provisório. Ou a título nenhum. Ou a título do que calhar. Sobre este museu cada serviço público foi criando uma espécie de versão oficial que torne o acontecido menos vergonhoso: por exemplo, para a CML o Museu de Arte Popular existe e funciona, com aquela mácula da estética do Estado Novo mas funciona. Como se lê no site da CML: “O espaço organiza-se de acordo com uma divisão do país em províncias administrativas, e a própria apresentação das colecções está nitidamente marcada pelas concepções e pela estética do Estado Novo. Este imóvel está classificado como Monumento de Interesse Público. A partir de Dezembro de 2010 assistimos à reabertura faseada do Museu após o seu encerramento em 2008 para obras de remodelação.”
Já a Direcção-Geral do Parimónio Cultural optou por uma prosa ditirâmbica, escrevendo a propósito do Museu de Arte Popular: “Hoje assume-se como um lugar de encontro e diálogo de diversas áreas disciplinares, um museu-documento, um lugar da Memória que se projeta na contemporaneidade.” Mesmo no fim do texto sobre o “museu-documento, um lugar da Memória que se projeta na contemporaneidade”, “lugar de encontro e diálogo de diversas áreas disciplinares”, avisa-nos a Direcção-Geral do Património Cultural que “o acervo do Museu de Arte Popular foi entretanto transferido para o Museu Nacional de Etnologia, onde está exposto em reservas visitáveis.” Entretanto? Qual entretanto? No entretanto que demorou a escrever aquele arrazoado do “lugar de encontro e diálogo de diversas áreas disciplinares, um museu-documento, um lugar da Memória que se projeta na contemporaneidade”?
No entretanto também convém esclarecer que o acervo do Museu de Arte Popular não está exposto no Museu Nacional de Etnologia. Está sim guardado. E não está guardado de modo a ser mostrado, mas sim preservado. Portanto, as visitas são teoricamente possíveis mas na prática as limitações às visitas são inúmeras, sobretudo quando se pretendem ver as peças que não estão na Galeria da Vida Rural.
Ironicamente, tendo nascido enquadrado na propaganda do Estado Novo, o Museu de Arte Popular foi condenado à agonia e depois à morte porque os senhores da nova propaganda, mais do que não tolerarem um símbolo do Estado Novo, o que não suportavam era precisamente o que esse museu transmitia sobre a capacidade de comunicar. O Museu de Arte Popular tornou-se no museu que não pode ser não por aquilo que foi no Estado Novo mas sim por aquilo que mostra do que não conseguimos ser na democracia.