Logo depois do atentado de 13 de Julho e da convenção republicana, todas as bênçãos do céu e da terra pareciam concentrar-se na dupla D.J. Trump – J.D. Vance e ter desertado a concorrência, com o Todo Poderoso a teimar em não aparecer ao Presidente em exercício, que só abandonaria a corrida para um segundo mandato “if the Lord Almighty came down and said – Joe, get out of the race”.

Mas porque Deus Todo Poderoso nunca mais descia à Terra para instar o Presidente a desimpedir o caminho, outros senhores menos poderosos mas mais influentes tiverem de o fazer, apresentando a Joe uma proposta que o velho inquilino da Casa Branca não pôde recusar. E lá teve o Presidente de entregar o testemunho à sua vice, Kamala Harris, para que o substituísse na corrida eleitoral.

Kamala viera em 2020 para o ticket democrata por representar a facção  esquerda do Partido, compensando os mais radicais pela escolha de um presidente tão “homem branco”  e tão “centrista”. Que o vice-presidente viesse equilibrar o presidente era prática recorrente.  Por isso Obama fora buscar Biden e John Fitzgerald Kennedy, católico e de Boston, quisera ter a seu lado Lyndon B. Johnson, um texano rústico e protestante, descendente de pioneiros do Lone Star State, de rancheiros, de agricultores, de soldados da Confederação.

Mas em 2024 a tradição parece ter deixado de ser o que era.

Donald Trump podia ter escolhido Nikki Haley, mulher e republicana moderada, ou Tim Scott, senador negro do Sul, para “equilibrar” a sua candidatura, mas preferiu consolidar o seu popular “populismo” com um dos representantes do nascente “populismo intelectual”: o “branco pobre” dos Apalaches James David, famoso pela sua Hillbilly Elegy. Vance protagonizava uma história de sucesso muito americana – serviço nos Marines com uma passagem pelo Iraque em guerra que o desiludira quanto à cruzada neoconservadora para exportar a democracia, Yale, sucesso empresarial, conversão ao catolicismo e sensibilidade ao nacionalismo, aos reveses da emigração desregulada e ao solidarismo social do pós-liberalismo norte-americano. E pensamento articulado, coisa rara nos dias que correm – na política e na América.

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Também Kamala Harris tinha, na sua short list, três candidatos a vice: Mark Kelly, senador do Arizona, Josh Shapiro, governador da Pensilvânia, e Tim Walz, governador do Minnesota.

O curriculum de Kelly tinha tudo para conquistar conservadores e independentes: aviador de combate na guerra do Golfo e astronauta, e eleição e reeleição para o Senado pelo Arizona em 2020 e 2022, uma proeza num Estado que desde 1962 era republicano.  Mas, aparentemente, Kelly não era suficientemente “normal” para normalizar o progressismo de Harris.

Joshua David Shapiro, congressista pela Pensylvania, eleito Procurador-Geral pelo Estado entre 2017 e 2023, onde dirigira com rigor as investigações sobre os abusos sexuais na Igreja Católica, e Governador da Pennsylvania em 2023, também tinha um bom curriculum.  E seria o primeiro judeu praticante a entrar na Casa Branca como vice da primeira mulher “negra” presidente.  Pena que na crise nascida dos ataques do Hamas em 7 de Outubro Josh se tivesse revelado (anormalmente?) crítico das manifestações anti-judaicas e pró-palestinianas nas universidades americanas. Era preciso alguém mais “normal.”

O escolhido

E o escolhido foi… Tim Walz, que vinha, não para equilibrar mas para exponenciar o progressismo de Kamala; um homem que, com a propaganda adequada,  podia convencer os conservadores mais distraídos, passando maravilhosamente por americano médio, por cidadão comum, por um afável “moderado” cuja branquitude, a masculinidade, a pertença à classe média e as “piadas à pai de família” dissociariam o ticket democrata das políticas radicais que o mesmo Walz tinha vindo a promover e que vinham afastando a Esquerda…do “cidadão comum”. Assim, com este recurso à “normalidade”, diluía-se o dilema de uma esquerda “too woke to connect with voters” ou em claro processo de desconexão com o povo trabalhador; uma esquerda que, assim, não teria já de escolher entre a “wokeing class” e a “working class”.

Com a sua agora anunciada e até aqui inédita “visão tradicional da família e da agricultura”, com as suas  dicas automobilísticas para arranjar um Ford, Walz podia ser a peça que faltava, o dois em um, a tentativa de normalização e diluição do radicalismo num almejado “wokismo popular” que, idealmente, sossegaria os radicais e iludiria moderados e conservadores.

Não deixa de ser um feito de engenharia eleitoral promover Tim Waltz como moderado. Mas mais relevante do que as costumeiras manobras de propaganda é o facto de o Partido Democrata se sentir compelido a configurar Walz como um “average american”, ou seja, que sinta a necessidade de se aproximar do povo apelando à “normalidade” ou até a uma qualquer americanidade tradicional do seu candidato a vice.

Alguns dos nossos comunicadores locais, mais dóceis aos prodígios milionários da propaganda americana ou mais ansiosos por promover a dupla-maravilha Kamala-Tim, até já o apresentam como conservador. É branco, é de classe média, foi treinador de futebol americano, aparece de fato e gravata, qual quadro local da antiga União Nacional ou militante do “país real” do CDS ou do PSD nos anos do cavaquismo, logo, é conservador. E, não menos importante, é veterano da Guarda Nacional, que é como quem diz veterano de guerra (ou diria, se Walz não tivesse saído oportunamente da Guarda Nacional dois meses antes de o seu batalhão ter sido oficialmente mobilizado para o Iraque).

É claro que o conservador Walz legislou no sentido de proibir quaisquer restrições ao aborto no Minnesota, ali possível até aos nove meses; mas que tem isso de radical? Chama-se “liberdade reprodutiva”, em relação à qual nem o Estado, nem a objecção de consciência de quem quer que seja pode ou deve fazer o que quer que seja, a não ser encorajar vigorosamente, conservar inalienavelmente, promover radicalmente, essa liberdade total.  Já quanto à Covid 19, aí sim, urgiam interferências no sentido de restringir severamente a liberdade locomotiva dos cidadãos do Minnesota, mas para conservar a sua saúde.  Devia até estimular-se a denúncia fraterna dos infractores por vizinhos vigilantes e estender-se o uso de máscara ao interior do domicílio.  Foi o que o moderado Walz fez.

O vice de Kamala também mostrou considerável moderação e compreensão quando dos episódios de violência racial desencadeados depois da morte de George Floyd por um polícia: a violência eclodiu em Minneapolis e noutras cidades do Minnesota e propagou-se a toda a América, mas apesar dos pedidos urgentes do Mayor e do chefe da Polícia de Minneapolis para que Walz mobilizasse a Guarda Nacional a fim de ajudar a conter os distúrbios, o Governador, com clara simpatia ideológica pelos desordeiros, achou por bem levar o seu tempo. Além de mais duas mortes a somar à de Floyd, de muitas dezenas de feridos e de mais de 600 prisões em Minneapolis, os prejuízos, ao longo de cinco noites, ascenderam a cerca de 500 milhões de dólares – quantia só ultrapassada em Los Angeles, em 1992, também num caso de violência racial, onde os estragos chegaram aos 1400 milhões de dólares.

Walz é também um pai para a América na promoção das causas Transgender e LGBTQI+. Menores que queiram mudar de sexo sem autorização dos pais têm nele um amigo (leia-se, em The Hill, “Tim Walz helped make Minnesota an LGBTQ ‘refuge’. Could he do the same for America?). Chegou até a assinar, na Primavera de 2023, uma Executive Order para resgatar Hildie Edwards, uma rapariga transgénica de 12 anos, fugida à tutela familiar.  Radicalismo, insensatez, interferência estatal, falsas e calamitosas promessas de felicidade fácil? Não. Chama-se “tolerância, inclusão e protecção de menores”.

Normais e radicais

Assim, é reivindicando a absoluta normalidade e como que defendendo a mais inócua e conservadora das agendas na mais estreita e tranquila comunhão com a velha América tradicional e popular, que Tim –parte de uma dupla de pessoas simples, tolerantes, absolutamente normais e de classe média que se candidatam à presidência para salvar a Democracia e a América – pode chamar “creepy” e “weirdos”, ou sinistros, excêntricos, anormais, aos dois republicanos que lhe vão fazer frente.

Mas porque aqui, mais do que em qualquer outro tempo ou lugar, as aparências iludem, não nos restam grandes dúvidas sobre quem, sob a capa da normalidade, irá impor as políticas mais radicais, mais intolerantes, mais sinistras, menos conservadoras e mais ética e moralmente danosas, caso ganhe em Novembro.