No passado dia 22 de Setembro, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou, por consenso, o Pacto do Futuro e os seus dois anexos: o Pacto Digital Global e a Declaração relativa às Futuras Gerações. 143 países votaram a favor, 7 votaram contra: Argentina, Bielorrússia, Coreia do Norte, Irão, Nicarágua, Rússia e Síria e 15 abstiveram-se (incluindo a China).

Infelizmente, o conjunto das boas intenções do Pacto e dos documentos anexos representa um exercício muito distante dos futuros possíveis, apesar de poder ser relevante do ponto de vista dos futuros desejáveis.

Há séculos atrás, todos os futuros eram possíveis. Futuros para o Planeta, futuros para a Humanidade. A Humanidade, na riqueza dos seus povos e culturas, tinha criado e destruído coisas belas, como diria Caetano Veloso. Aconteceram grandes civilizações, criações literárias e artísticas, avanços da ciência e da técnica. A população crescia, a um ritmo relativamente lento.

O grande e complexo ecossistema que é a Terra funcionava com autonomia da vontade humana, apesar de já terem ocorrido destruições de florestas, de espécies, alterações relevantes da paisagem causadas pelo Homem, e, eventos naturais de grande dimensão.

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Nos últimos duzentos anos, as capacidades humanas promoveram o que se pode chamar “aceleração do tempo”. Os ciclos de aumento populacional passaram a ser mais rápidos, as guerras mais destrutivas, os avanços da ciência e da técnica vertiginosos.  A hiperprodução e o hiperconsumo que modelam as novas eras industriais, levaram à escassez e à destruição de recursos naturais, à interferência com os ciclos da Natureza, envenenando a terra, o mar e o ar. Atualmente, até o que comemos nos envenena, pelos modelos de produção alimentar, os aditivos artificiais, a presença de microplásticos.

No que respeita ao mais profundo de nós próprios, afogámos a alma nos prazeres do entretenimento, perdeu-se a confiança na espiritualidade e centrou-se a vida nos bens materiais.

Neste Ano do Dragão – que no calendário chinês representa todas as possibilidades e perigos – libertaram-se no mundo tantas energias humanas negativas, que vivemos, expectantes, no prenúncio de novas crises económicas e sociais, provocadas pela guerra e os seus colaterais. Populações no Médio Oriente, na Ucrânia, no Sudão e em tantos outros pontos do mundo, sofrem as dores da violência extrema, da fome, da doença. Populações dos países ocidentais dividem-se entre extremismos de Direita e de Esquerda. A atenção às alterações climáticas tem sido insuficiente para evitar o agravamento das condições atmosféricas.

O Pacto do Futuro e seus anexos, apesar de refletir sobre o mundo contemporâneo e propor medidas genéricas importantes, enferma de vários males. Primeiro, a maior parte dos seus conteúdos é uma repetição de documentos internacionais já aprovados pelas Nações Unidas, procurando, de alguma forma, enfatizar os mesmos. Depois, um ponto essencial do documento – a defesa do multilateralismo e da “rule of law” – está muito distante da realidade que se vive – o Pacto é aprovado num momento em que a incapacidade da ONU de equilibrar as condições do multilateralismo e da “rule of law” são evidentes.

Há um elemento interessante no Pacto, que, atendendo à data da sua aprovação, terá poucos efeitos práticos. Trata-se da valorização do papel da Cultura e do Desporto – que faltou nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável definidos, em 2015, para 2030. Cito o que diz o texto:

“Ação 11. Protegeremos e promoveremos a cultura e o desporto como componentes integrais do desenvolvimento sustentável.
Reconhecemos que a cultura e o desporto oferecem aos indivíduos e às comunidades um forte sentido de identidade e fomentam a coesão social. Reconhecemos também que o desporto pode contribuir para a saúde e o bem-estar dos indivíduos e das comunidades. A cultura, bem como desporto são, por conseguinte, importantes factores de desenvolvimento sustentável. Decidimos:

a) Assegurar que a cultura, bem como o desporto, possam contribuir para um desenvolvimento mais eficaz, inclusivo, equitativo e sustentável, e integrar a cultura nas políticas e estratégias de desenvolvimento económico, social e ambiental e assegurar um investimento público adequado na proteção e promoção da cultura;

b) Incentivar o reforço da cooperação internacional em matéria de restituição e o reforço da cooperação internacional em matéria de regresso ou restituição de bens culturais de valor espiritual, ancestral, histórico e cultural aos aos países de origem, incluindo, mas não se limitando a objectos de arte, monumentos, peças de museu, manuscritos e documentos, e incentivando vivamente as entidades privadas relevantes a empenharem-se da mesma forma, nomeadamente através do diálogo bilateral e com a assistência de mecanismos multilaterais, se for caso disso;

c) Promover e apoiar o diálogo intercultural e inter-religioso para reforçar a coesão social e contribuir para o desenvolvimento sustentável.”

Friedrich Nietzsche, no seu texto “Genealogia da Moral” (1887), e conforme se condensa num texto introdutório a uma republicação com revisão do texto em Inglês  pela Cambridge University Press (2017), diz que “A tarefa da cultura é produzir indivíduos soberanos, mas o que realmente encontramos na história é uma série de deformações e perversões dessa tarefa cultural”.

Num texto anterior, de 1882, “A Gaia Ciência” (115), referia que a Humanidade foi educada a partir de “quatro erros”:

1.Vemo-nos apenas de forma incompleta.

2.Dotamo-nos de atributos fictícios.

3.Colocamo-nos numa “falsa posição” em relação aos animais e à natureza – isto é, vemo-nos como sendo inerentemente superiores a eles.

4. Inventamos tabelas sempre novas do que é bom e depois aceitamo-las como eternas e incondicionais.

O que tem estes textos a ver com o Pacto do Futuro da ONU?

Tudo. Porque o texto do Pacto do Futuro é desenvolvido a partir de uma visão cultural do mundo que precisa de ser atualizada e enriquecida, precisamente, numa ideia multilateral, para lá dos poderes estatais soberanos, e que respeite a multitude de visões culturais e valores associados.

O que se esconde atrás das guerras que vivemos e de muitas crises que passamos, não é só, mas também, aquilo que na minha crónica anterior chamei “a mão invisível da Cultura”.

A “soberania cultural”, ou, se se quiser, o poder de determinar visões pessoais e sociais sobre o Eu, o Outro e o Mundo, condiciona o exercício de todas as outras soberanias, pois é a partir das suas narrativas que se organizam as estruturas de valores, as motivações pessoais e coletivas em seu torno e os movimentos que provocam.

Sendo a questão da Soberania um equivalente da questão do Poder e sendo que vivemos, agora, e pela evidência da guerra, a libertação dos demónios associados ao Poder, é urgente visitar os quadros referenciais de diferentes culturas e, a partir dos mesmos, estabelecer formas de entendimento.

O paradoxo é o seguinte: esta tarefa urgente precisa de um tempo longo para se cumprir e os desentendimentos atuais exercem-se num tempo curto.

Neste tempo curto, não haja dúvidas, as fúrias libertadas e por libertar, dificilmente se deixarão conter por quadros culturais complexos. Vive-se, agora, o mais primário dos momentos: a lei do mais forte, sendo que força, aqui, é mesmo força bruta, a mais básica afirmação do homem selvagem na luta pela subsistência.

A ciência e a tecnologia são incapazes de resolver o mundo, limitam-se a gerar dispositivos, finalmente, brinquedos, nas mãos de crianças.

Se queremos, verdadeiramente, crescer, precisamos de promover a soberania cultural, enquanto exercício de manifestação plena da pessoa e da comunidade, para lá das intoxicações de falsas promessas de narrativas – também elas, culturais.

Como distinguir entre a Cultura como espaço de liberdade e a Cultura como espaço de condicionamento? De que soberania, de que poder, se está a falar?

Não há resposta certa para estas perguntas. Com humildade e vontade de construir, todavia, será possível avançar com respostas e nesse avanço, aceitar a multitude de visões do mundo, promover a coexistência pacífica e, finalmente, o encontro.