“Cada Um é da Cor do seu Coração”, um livro lançado há dias, é uma seleção de textos representativos do pensamento do padre António Vieira sobre a escravatura. Trata-se de uma obra muito útil pois continuam a escrever-se e a dizer-se coisas incrivelmente ignorantes sobre a forma como Vieira via a escravatura dos africanos. Algumas confusas cabeças deram, até, em acusá-lo de ser um acérrimo defensor da escravidão dos negros. Terá isso algum fundamento?
A dificuldade de responder com um simples sim ou não a essa pergunta, como se estivéssemos num tribunal ou num teste americano, mostra bem a estupidez de aplicar, de forma mecânica, esquemas mentais e grelhas de questionário do século XXI a homens e situações do século XVII. Digamos que essa é mesmo a única virtude da acusação que se faz a Vieira, ou seja, a de nos fazer tomar consciência de que estamos perante um mundo muito diferente do nosso e de que a tradução de um para o outro não é instantânea nem simples nem linear. Quem não entender essa verdade elementar não entenderá o passado nem o que condicionava e motivava as pessoas que nele viveram. Sabe-se que há muita gente que não está interessada em compreender coisíssima nenhuma, apenas em condenar e apedrejar. Para todos os outros, os que gostam de perceber as coisas, e que querem saber se as acusações são ou não justificadas, aqui ficam umas linhas sobre a relação do padre António Vieira, e de outras pessoas do seu tempo, com a escravatura.
A primeira coisa que é preciso perceber é que no século XVII, com raríssimas excepções, as pessoas em toda a parte do mundo, até mesmo em África e entre os africanos, aceitavam a escravatura. Diz-se que os próprios escravos negros a rejeitavam, o que é uma ideia muito romântica e aparentemente muito lógica, mas que tem o grande inconveniente de ser falsa. Muitos dos escravos que se revoltavam e fugiam, e que conseguiam, assim, atingir a liberdade, escravizavam outras pessoas, ou seja, tornavam-se, por sua vez, senhores ou traficantes de escravos. Foi assim no famoso quilombo de Palmares, foi assim entre os escravos revoltosos da região de Baçorá, no actual Iraque, foi, inclusive, assim, com alguns dos líderes da grande revolta de São Domingos (futuro Haiti) e em muitos outros casos historicamente documentados. Antes da última metade do século XVIII não havia abolicionistas nem na Europa nem em nenhuma outra parte do mundo. Apenas algumas, poucas, vozes que criticavam certas modalidades do tráfico de pessoas ou certas perversões e crueldades na relação dos senhores com os seus escravos. Fala-se, por vezes, no padre Fernando Oliveira como sendo alguém oposto à escravidão, mas trata-se de um mal-entendido. Fernando Oliveira admitia a escravidão que resultasse de guerra justa.
O padre António Vieira, que viveu no século XVII, também aceitava a escravidão, o que não quer dizer que a aplaudisse ou promovesse. Para perceber a sua posição e o seu pensamento é útil recuar até à Antiguidade Clássica, até às filosofias de Aristóteles e dos estóicos, porque, no Ocidente, foi sobre elas que se moldou boa parte do que os séculos posteriores pensaram sobre a questão dos escravos. Para Aristóteles, a escravidão estava no mesmo plano de qualquer outra relação de subordinação de cariz doméstico, como as relações pai/filho, por exemplo. O filósofo grego acreditava que a escravidão teria uma base natural e racional, que muito simplesmente residia na inferioridade do escravo. Na sua visão alguns estariam, desde a hora do nascimento, destinados à sujeição, ainda que isso nem sempre fosse perceptível por sinais exteriores (o que implicava potenciais injustiças, pois a guerra e outras convulsões sociais e políticas podiam lançar gente intrinsecamente livre na escravidão). Os estóicos tinham uma perspectiva diferente. Viam a escravidão como algo basicamente contrário à natureza. Contudo, esse facto não os levava a contestá-la, porque os estóicos relativizavam a ideia de liberdade (e, consequentemente, também a de escravidão). Para eles a verdadeira liberdade consistia na capacidade da pessoa se elevar acima das suas limitações, dos apetites materiais e das agruras da vida. Nessa óptica, o papel que um indivíduo desempenhava na sociedade não seria determinante e o escravo estava, à partida, e nesse âmbito, tão bem posicionado como qualquer poderoso do mundo. Para lá da aparência das coisas, o escravo podia ser realmente livre, enquanto que o cidadão abastado e juridicamente livre poderia não passar de um miserável escravo dos seus instintos e impulsos. Ou seja, para os estóicos havia escravos aparentes e escravos reais. Na esteira dessa concepção, no século I, Séneca viria a defender que só o corpo do escravo podia ser propriedade do senhor visto que a sua alma era livre, ou melhor, potencialmente livre. Os estóicos consideravam, de facto, que, na prática, a verdadeira liberdade era atingida apenas por um número reduzido de pessoas que a ela acediam através do seu esforço individual. A grande maioria da população, fosse qual fosse o seu estatuto social, era geralmente escrava do vício, do desejo, da má acção.
Os primeiros teóricos da Igreja, que conciliaram Cristo com as realidades do mundo romano, embeberam as concepções aristotélicas e estóicas na mensagem cristã e conseguiram reforçar os seus pontos de convergência e harmonizar as suas divergências. No seu pensamento, as dicotomias estóicas de escravo aparente/escravo real e de corpo cativo/alma livre foram integralmente aproveitadas, e a ideia de inferioridade natural do escravo foi absorvida no conceito de pecado. Para os padres da Igreja, a verdadeira liberdade era a ausência ou remissão do pecado. Essa forma particular de liberdade estava ao alcance de todos — não apenas de uma elite como pretendiam os estóicos —, e obtinha-se através da entrada na comunidade cristã. Para os pensadores da Igreja o que realmente importava era não tanto a libertação do corpo, mas a salvação da alma, visto que o único escravo verdadeiro era o escravo do pecado. O recurso ao conceito de pecado permitia, aliás, solucionar a questão da potencial injustiça do acto escravizador, que Aristóteles identificara mas não chegara a resolver. De facto, e como dizia Santo Agostinho, na medida em que o pecado marcava toda a humanidade, ninguém seria inocente, cabendo a Deus indicar quem devia comandar e quem devia obedecer.
É para este quadro de referência, que resultou da fusão do pensamento das principais autoridades da Antiguidade com o dos teólogos cristãos, que os sermões de António Vieira sobre escravatura remetem. Assim, quando Vieira explicava aos escravos negros que deviam entender e aceitar o estado de escravidão, não estava a ser hipócrita, nem a desrespeitar os valores cristãos, nem, obviamente, a ser um sádico escravista. Na verdade, e em concreto, Vieira arrepiava-se com a dureza e iniquidade do tratamento infligido aos escravos. Entristecia-se com a visão dos navios que chegavam de África carregados de centenas de negros. Revoltava-se com o contraste entre a humildade do pobre escravo africano e a soberba e opulência do seu senhor. Mas esses sentimentos eram amortecidos pela convicção profunda de que essa situação, aparentemente iníqua, obedecia a um propósito divino oculto. Vieira era um homem de Seiscentos, um homem da Igreja, que vivia num mundo regido pela Vontade de Deus. Acreditava que todas as coisas tinham uma razão de ser no âmbito dessa Vontade. Acreditava firme e sinceramente na dualidade corpo/alma, e achava, à maneira de Séneca e de outros filósofos (que Vieira explicitamente cita), que o que interessava verdadeiramente era a libertação e a salvação das almas, não a dos corpos. A importância do estado de escravidão era, por isso, muito relativa. Vieira não tinha a nossa noção moderna de escravatura nem, acrescente-se, a nossa noção de liberdade. Essas noções estão inter-relacionadas, não são imutáveis e têm, como todas as outras coisas, uma história. Quem quiser percebê-la deverá recorrer ao livro de David B. Davis, The Problem of Slavery in Western Culture, uma das obras essenciais da historiografia da escravatura, que tem sido estranha e persistentemente ignorada em Portugal, apesar de também existir em edição brasileira.
Aqui chegados talvez seja altura de voltar à pergunta de onde partimos: seria o padre Vieira um defensor da escravatura dos africanos? A resposta, depois do que ficou exposto, é claramente não. Aceitar ou tolerar não são sinónimos de defender ou promover. Imagine-se a viver em 1650 no Brasil, em São Salvador. Suponha que é um homem do clero e que, da janela do seu quarto ou da porta da sua igreja, vê chegar regularmente os navios que vêm da costa de África cheios de escravos negros. Não se esqueça de que vive em 1650, um tempo em que, na esteira de Santo Agostinho e de outros Padres da Igreja, ainda se vê a escravidão como o resultado de guerra justa, uma consequência do pecado e uma forma de civilizar os pagãos. Acha, sinceramente, que teria uma visão muito diferente da do padre Vieira? Eu faço esta pergunta às pessoas razoáveis, não aos que, de há um ano a esta parte, projectam no passado as suas mal-informadas e mal-alinhavadas ideias e acusam Vieira e outros antigos portugueses de mil erros e crueldades. Essas pessoas têm a prosápia dos que estão convencidos de que, se tivessem vivido no século XVII, teriam certamente acabado com o tráfico negreiro e com todas as injustiças do mundo. É fácil a estes cavaleiros e cavaleiras do bem falar assim, numa altura em que o problema já está, felizmente, resolvido. Se tivessem vivido no tempo de Vieira a sua prosápia fiaria mais fino.
João Pedro Marques é historiador e romancista