Nunca me esquecerei daquela vez em que o meu filho, com os seus 8 anos, chegou a casa verdadeiramente indignado pela forma como a professora da escola lhe havia corrigido o teste de português. Onde era suposto legendar uma figura que aparentemente representava uma pata adulta a dar de comer aos seus filhos, o meu filho, na sua ingenuidade infantil, escreveu que o pai dava de comer aos filhos”, ficando indignado por a professora ter descontado a resposta por aparentemente estar errada. Errada porquê, perguntava ele à sua mãe, o que é que estaria errado na sua resposta?

Para a criança nada estaria errado, até porque em muitas comunidades avícolas, os machos são responsáveis por alimentarem as suas crias. O verdadeiro erro de perceção estaria no fato de o meu filho sempre ter visto o seu pai, autor destas singelas palavras, como quem cozinhava e estava na origem da maioria das suas refeições. Por isso nada encontraria de contrário para que o pato pudesse ser o responsável por estar a alimentar os seus filhos.

Acontece que na sociedade os clichés têm muita força. Coitada da professora, poderia ela perceber que as sociedades mudam e que, felizmente, os pais hoje têm, e devem ter, tanta preponderância como as mães nos afazeres diários educativos, formativos e rotineiros do crescimento dos filhos?

Esperemos que em breve deixe de haver misoginia e clichés acerca de a quem se deve cada papel, da relevância nos diferentes sectores da sociedade ou das obrigações na organização familiar.

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Mas enquanto nos entretemos com estas nossas pequenas dúvidas existenciais de país ocidental, não nos podemos esquecer que partilhamos o planeta com sociedades em que 50% da população exerce sobre a restante um poder hegemónico, supressivo e opressivo dos direitos. No Irão, por exemplo, em que pelo simples fato de uma representante da metade oprimida da sociedade não ter usado de “forma adequada” um lenço em volta da cabeça, que não lhe cobrisse as feições, foi torturada, espancada e barbaramente assassinada.

Não cabe na cabeça de ninguém que uma mulher, aparentemente apolítica, orgulhosa, no esplendor da idade, tenha sido acossada por uma “polícia de costumes” para assegurar que os homens não tivessem a ousadia de admirar as suas feições e para que resguardassem os seus ímpetos animalescos de urgência sexual.

Que religião ou sociedade pode incitar 50% da sua população contra a sua outra metade? Uma sociedade que procurou esconder as mulheres dos homens durante 43 anos, uma sociedade onde mais de 30% da população tem menos de 35 anos e 60% tem menos de 50 anos, dominada por uma gerontocracia que acha que a dignidade se vence pela subjugação da condição da mulher. É doentio e sem cabimento. Só pode acabar com a libertação das mulheres do jugo de uns religiosos que tudo confundiram. Nada na religião que professam pode ser adequado à opressão que originaram sobre 50% da sua população.

O mesmo professaram católicos e judeus durante milénios – não julguem que se safam da crítica – que apenas após o final da 2ª Guerra Mundial permitiram, a pouco e pouco, que 50% da população pudesse começar a exprimir todo o seu esplendor, para bem da humanidade.

Termino este texto lembrando o jantar que acabei de ter em companhia de bons amigos. Teve a sua epifania quando o grupo das nossas esposas e companheiras de vida se entretinha em amena cavaqueira na sala de jantar, enquanto nós velávamos na cozinha pelo magnífico arroz de tamboril que seria apreciado em tertúlia e na companhia de excelentes vinhos, entre amigos convictos de uma versão democrática e liberal da sociedade.