(este texto não é um incentivo ao catolicismo, mas, sim, um incentivo a algo urgente de que nos temos, invariavelmente, esquecido: pensar.)
O Papa chega a Lisboa no dia 2 de Agosto e parte dia 6 do mesmo mês. Neste período, a agenda da visita desdobra-se em várias actividades: recepções a peregrinos, acolhimentos, encontros rise-up, vigílias e rituais religiosos vários.
Entre estes planos existe, ainda, isto: a cidade da alegria. O que é ao certo? Só lá indo se saberá, com certeza. Contudo, cidade da alegria é tudo aquilo que o meu País não tem conseguido ser. Por aqui, o que se ouve, quanto à chegada da Santidade Máxima é: problemas com o palco, falta de voluntários e infinitas críticas avulsas. O meu País tende a perder-se, sempre, quanto a isto e quanto a tudo, nos subúrbios esbatidos de uma eventual Cidade da Alegria, se é que esta chegue algum dia a existir, no termo efectivo da palavra. Insistentemente perdido, o meu País, nos arredores recônditos de tudo aquilo que possa provocar sorrisos e progresso humano real.
Por exemplo, o Papa já enlaça os atacadores para sair do Vaticano e, agora, a discussão passou a ser quem deve ser amnistiado! Se os meninos de 16 anos ou os adultos de 40, todos prevaricadores da lei, não se discutindo a maleita grave que é, em 900 anos de existência, continuar a haver quem ofereça tempo útil de vida a grades por trinta tostões ou menos.
O foco deveria ser esta coisa das amnistias? Para o meu País, sem dúvida alguma: vá lá ver, até aos 30 anos, sim, admitimos que as penas podem cair, ouve-se, seguido de um grito histérico que diz mas porquê até aos 30 e não até aos 29 ou 31? Morre o povo, lentamente, de ouvidos em carne viva quase seca, enquanto espera somente que o Papa chegue, ou nem chegue, desde que as discussões inócuas terminem de uma vez. Prefere, o povo, desesperado, antes o silêncio abstémico – expressado manifestamente em todos os actos eleitorais – quanto a gritarias estéreis que a tudo ameaçam lançar garras, descurando, sempre, qualquer eventual aspecto construtivo. Pensa, também, o povo, de olhos semicerrados, com uma colher de sopanga velha em sopros de boca e já de televisão apagada, na cidade da Alegria e no que isso pode ser ao certo.
Uma cidade em que a visita do Papa, quanto a crentes e não crentes, leva a ponderações intimamente humanas? Por exemplo: andarei, eu, a existir? Quando foi a última vez que, eu, me senti humano de forma plena? Onde está a alma que todos dias, eu, enterro na apatia de um quotidiano estupidamente repetitivo? Ahhhhhh! Percebe-se o motivo que faz, o meu País, já nunca passar dos subúrbios da potencial Cidade da Alegria, se é que esta exista, no termo efectivo da palavra.
A Cidade da Alegria, ao longe, para lá até de um programa escrito num cartaz respeitável, para lá até de qualquer acto humano utopicamente louvável, é tudo aquilo que o meu País se tem recusado a ser, século atrás de século.
Porquê, alguém pergunta. Não é que se queira converter pessoas – até porque o sentido dado à cidade de alegria, neste texto, é meramente metafórico -, mas há algo potencialmente especial e certo no termo “cidade da alegria” que só não vê quem se recusar a ver com os olhos: um lugar onde o homem existe como nunca conseguiu existir, em franca união com a sua própria humanidade? Um lugar onde os sorrisos respondem a olhares mudos mas tremendamente falantes? Um lugar em que se pensa e progride a existência real da espécie humana?
Seja o que for, tudo isto soa a algo que no meu País, nem com a visita iminente do Papa, se procura. Tudo é ruído e nada, jamais, parece almejar reter aspectos positivos à laia de feira ensurdecedora que tudo procura vender à socapa do fiscal eternamente distraído.
Achas que a manchete se faz sozinha?, ouve-se. O que raio interessa isso, afinal? As manchetes interessam, se interessarem sequer, unicamente ao solitário fazedor desses títulos, isolado do mundo num escritório peganhento com um computador quase sem bateria à frente. Ao povo, refém de uma vida humanamente insuficiente — confessada e aceite, por todos, através das tais manchetes e gritarias desesperantes — interessa a questão se não seria possível, pelo diálogo construtivo, encontrar o caminho rumo à efectiva cidade da alegria, católica ou simplesmente, até, humana. Quando muito, ao povo talvez possa interessar, inconscientemente, entender se o diálogo afectuoso e profícuo, em lugar da gritaria fácil e desesperante, não poderia servir, de igual modo ou até melhor, as intenções do fazedor de manchetes distante do quotidiano humano.
O Papa já espreita Portugal e as pessoas passam a espreitar-se a si mesmas! Que bem, imagine-se… apesar, claro está, do risco enorme quanto àquilo que poderia vir a ser encontrado nos confins quase esquecidos do interior de carcaças sequestradas pelo individualismo manifesto de um sistema perpetuamente mecanizado e em repetição. Um facto: haverá uma tremenda surpresa quando as pessoas, seja pelo Papa, seja por qualquer outro motivo que entendam válido, decidam espreitar o que se lhes esconde no infinito abismo no qual têm insistido em sepultar, continuamente, a vida que podiam ter tido sem nunca ter.