Vivemos em tempos paradoxais, em que a sofisticação do trivial nos empurra para uma complexidade desnecessária e, por vezes, absurda. Enfrentamos uma encruzilhada cultural, onde a simplicidade é frequentemente subvertida por uma busca incessante por “personalização” que, em última análise, cria um labirinto sem saída. É como tentar admirar a transparência serena de um rio cristalino enquanto alguém insiste em lançar-lhe tinta para torná-lo mais interessante. Não é que o rio carecesse de beleza, mas parece que nos tornámos desconfortáveis com aquilo que é genuinamente simples. Esta inquietação revela um profundo desejo de subestimar o que é essencial, promovendo um fetiche pela complexidade que beira o ridículo.

A expressão “pensar fora da caixa” tornou-se um dogma da nossa era, aclamada como o antídoto para a mediocridade. Contudo, será que nos questionámos suficientemente sobre o valor dessa caixa? A caixa, outrora celebrada como a invenção que nos trouxe estabilidade e organização, tornou-se, ironicamente, um símbolo de limitação. É fácil esquecer que essa estrutura nos protegeu, conservou alimentos, e permitiu a transmissão de ideias ao longo dos séculos. Hoje, contudo, estar associado à caixa é quase ofensivo; é ser relegado à estagnação, como se a criatividade autêntica dependesse exclusivamente da rejeição de qualquer norma estabelecida. Este culto ao “inovador” é a nova alavanca de valor social, mesmo quando nos conduz a criações questionáveis como sapatos que enviam mensagens de texto. Vivemos numa realidade onde cada objeto, por mais insignificante que seja, é compelido a justificar a sua existência com alguma extravagância funcional, em detrimento do valor inerente da simplicidade.

As tradições, que durante tanto tempo foram o alicerce cultural que nos conectava ao passado, são agora vistas como anacronismos, objetos de escrutínio e, frequentemente, de desfiguração. A adição de queijo da Serra ao pastel de bacalhau é apenas um exemplo sintomático dessa “guerra de sabores” que representa o desconforto contemporâneo em aceitar o valor intrínseco do que é tradicional. É como se alguém olhasse para um soneto de Camões e dissesse: “Isto ficava melhor com emojis”. Este movimento não se trata apenas de uma adaptação; é uma tentativa de subverter o que é belo e, consequentemente, comprometer a sua autenticidade. As tradições têm a capacidade de transcender gerações e contar histórias que entoam na nossa identidade coletiva. Contudo, na ânsia de renovar tudo, aquilo que sobrevive ao teste do tempo é frequentemente relegado ao estatuto de obsoleto, a menos que seja “atualizado” para manter a sua relevância.

E as bolas de Berlim — doces simples que em tempos representaram a felicidade das tardes de verão — são agora o reflexo de uma humanidade que se perdeu na sua própria ânsia de sofisticação. Um recheio de creme já não é suficiente. O que antigamente trazia consolo é hoje um convite à confusão: uma superfície familiar recheada de sabores exóticos que só compreendemos após consulta a um cardápio complexo. É como transformar uma árvore de Natal num espetáculo fluorescente — interessante em termos técnicos, mas completamente desprovida de calor emocional. Este excesso de opções, longe de enriquecer a experiência, acaba por nos alienar do essencial, criando uma miríade de escolhas que obscurecem o prazer da simplicidade.

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É precisamente em nome da facilidade que a modernidade nos atrai para este labirinto. A suposta comodidade é uma ilusão sedutora que, no fim, nos afoga em escolhas banais e decisões fúteis. Já não pedimos um café; temos de escolher entre uma interminável variedade de estilos e sabores que transforma a simples experiência de um café num exercício de literatura minimalista. A promessa de facilidade e personalização transforma-se, assim, numa nova forma de escravidão, onde cada escolha parece aumentar a complexidade e o peso da nossa existência. A ilusão de liberdade oferecida pela diversidade de opções não é mais do que um engodo, pois a verdadeira liberdade reside na simplicidade — algo que se perde no labirinto das escolhas superficiais.

Esta lógica aplica-se também às nossas relações pessoais, agora submetidas à mesma lógica de reconfiguração perpétua. Namorar tornou-se um processo de triagem constante, uma seleção interminável de rostos e biografias num catálogo digital, como se escolher um parceiro fosse semelhante a escolher um móvel pré-fabricado no IKEA. Cada deslize num ecrã é um julgamento precipitado, cada “match” uma promessa que, frequentemente, se revela tão vazia quanto o manual de instruções de uma estante descartável. Amizades nascem e morrem no tempo de um story do Instagram, e os amores são classificados com estrelas, como se fossem um serviço de entrega ao domicílio. As relações perderam o valor da construção gradual e tornaram-se produtos de consumo imediato, onde a autenticidade é sacrificada em prol da rapidez e da satisfação instantânea. Aquilo que deveria ser um processo orgânico de construção de intimidade é agora comercializado como um bem, vendido em pacotes que prometem felicidade, mas raramente entregam mais do que uma ilusão efémera.

No centro deste frenesim, somos encorajados a “sair da zona de conforto”. A tão vilipendiada zona de conforto, a base onde florescem a criatividade e a alegria, é agora encarada como um lugar de estagnação que deve ser constantemente evitado. Mas será que alguém já se questionou sobre o custo desta saída constante? Exigir que saiamos repetidamente da nossa zona de conforto é como pedir a uma árvore para mudar de raízes; o conforto não é um obstáculo ao crescimento, mas sim o solo fértil onde a criatividade genuína pode prosperar. A sociedade contemporânea, contudo, parece determinada a idolatrar a mudança constante, como se o simples ato de nos sentirmos confortáveis fosse uma falha que precisa de ser corrigida a todo custo.

Ainda assim, há um tipo de beleza peculiar na modernidade, embora esta seja frequentemente de natureza irónica. Podemos observar o frenesi contemporâneo como um teatro do absurdo, onde cada um de nós é uma personagem cómica, envolvida numa perseguição interminável do “próximo nível”, sem perceber que a escada para lá chegar está, na verdade, partida. Tal como um gato que persegue um feixe de luz, somos cativados por essa busca, mesmo que seja, em última análise, fútil. Esta comédia trágica reflete a nossa vulnerabilidade, a tentativa desesperada de preencher um vazio existencial através de distrações cada vez mais numerosas, mas que, no final, não nos conduzem a lugar nenhum.

A verdade é que esta busca incessante pelo “melhor” nos afasta daquilo que realmente importa. Na ânsia de reinventar a nossa identidade, esquecemos que elementos como um rio cristalino, um pastel de bacalhau na sua forma mais pura, ou uma bola de Berlim autêntica são mais do que objetos; são âncoras culturais que nos ligam a um passado comum, fragmentos de uma história que nos ajuda a entender quem somos. A modernidade, ao oferecer-nos substitutos cintilantes, muitas vezes carece da profundidade e do significado do original. A essência das coisas não reside na sua complexidade, mas na sua capacidade de evocar memórias e de suscitar emoções genuínas, algo que não pode ser reproduzido através de uma simples reformulação.

Talvez, quando o ruído do excesso nos cansar, possamos regressar ao silêncio e à simplicidade do essencial. Talvez um dia consigamos redescobrir o valor do que é familiar sem a necessidade de o transformar continuamente em algo extraordinário. Até lá, continuaremos a ser turistas num parque de diversões, onde a sardinha assada é servida com uma espuma molecular de hortelã e o pastel de nata se veste com chocolate belga, ou servido recheado com guacamole ou coberto com aioli. Resta-nos a capacidade de rir deste espetáculo e, quem sabe, pedir um café simples — numa chávena de porcelana, pois até na simplicidade há espaço para a dignidade. Talvez um dia possamos valorizar o silêncio, a pausa e a contemplação do que é puro, e perceber que a felicidade não reside na constante reinvenção, mas na capacidade de apreciar aquilo que já possuímos.

A modernidade não é, portanto, o verdadeiro problema. O problema reside na nossa compulsão por subverter a simplicidade, em vez de reconhecê-la como uma força que nos sustenta. Talvez, se pudermos parar a correria, possamos finalmente perceber que há beleza na repetição e conforto na familiaridade, e que nem tudo precisa ser revolucionário para ter valor. O paradoxo da simplicidade complexa só será resolvido quando tivermos a coragem de aceitar que o simples, muitas vezes, é mais do que suficiente. A verdadeira inovação reside em preservar, em reconhecer o valor daquilo que já existe, resistindo à tentação de complicar desnecessariamente. Afinal, um rio não precisa de tinta para ser belo, e uma vida plena não necessita de excessos para ser significativa.