1A decisão de 2021 do Tribunal Constitucional (TC) sobre a constitucionalidade da lei da eutanásia (e do suicídio assistido) é uma decisão complexa, densa, extensa e de difícil análise.
Esse facto terá contribuído para não ter sido dada a devida atenção à argumentação do TC, especialmente na parte mais importante da decisão, aquela em que se abordou directamente a questão da admissibilidade pela Constituição da República Portuguesa (CRP) da regulação legal de situações de eutanásia ou suicídio assistido e dos seus limites (capítulo D, nºs 23 a 33, pp. 25-40, na publicação no Diário da República), e através da qual o TC sublinhou o quadro constitucional que o legislador deve observar.
Essa lacuna justifica que neste artigo se destaquem essencialmente excertos dessa decisão.
A decisão do TC
2 A parte mais conhecida dessa argumentação (nº 32), e que mais tem sido citada, é a afirmação de que a morte medicamente assistida não é totalmente proibida pela CRP, na medida em que “o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias”. À tensão entre a “vulnerabilidade de uma pessoa originada pela situação de grande sofrimento em que se encontre” que não pretenda, no quadro de uma vontade livre e consciente, “continuar a viver em tais circunstâncias” e a protecção constitucional do direito à vida, “a proteção absoluta e sem exceções da vida humana não permite dar uma resposta satisfatória, pois tende a impor um sacrifício da autonomia individual contrário à dignidade da pessoa que sofre, convertendo o seu direito a viver num dever de cumprimento penoso”: logo, “o legislador democrático não está impedido, por razões de constitucionalidade absolutas ou definitivas, de regular a antecipação da morte medicamente assistida”.
3No entanto, ao mesmo tempo e do mesmo passo, o TC sujeitou a intervenção do legislador nesta matéria tão sensível a limites estritos.
Fê-lo, porque entendeu (nº 28) que essa lei terá sempre de espelhar, mesmo admitindo as situações limite da eutanásia ou suicídio assistido, um equilíbrio entre a protecção da autonomia e o direito à vida.
Por um lado, o direito à vida “não tem uma dimensão negativa: ao direito de viver (e, portanto, de não ser morto) não se contrapõe um direito a morrer ou a ser morto (por um terceiro ou com o apoio da autoridade pública), um direito a não viver ou um direito de escolha sobre continuar ou não a viver“.
Além disso, esse “hipotético direito fundamental a uma morte autodeterminada“, ou seja, um direito fundamental “quanto à disponibilidade da sua própria vida”, também não pode ser fundado na autodeterminação do próprio, “por razões de defesa do bem vida e da própria liberdade-autonomia daquele que deseja a sua morte”.
Neste enquadramento, o acto de suicídio corresponde “a uma actuação de facto (expressão da simples possibilidade individual de actuar)…, e não a uma liberdade juridicamente conformada e protegida”.
De qualquer forma, na regulação legal da morte medicamente assistida “não está em causa a conduta isolada de alguém que quer pôr termo à própria vida, mas a assistência de profissionais de saúde, num quadro de actuação regulado e controlado pelo Estado, à antecipação da morte de uma pessoa a pedido desta”, o que “coloca problemas de natureza diversa, que transcendem a esfera pessoal de quem pretende morrer, projetando-se socialmente com implicações para o dever (estadual) de proteção da vida”.
O TC traçou assim exigências apertadas quanto ao âmbito das situações de morte medicamente assistida admissíveis; quanto ao procedimento que deve ser observado; e quanto à clareza e determinabilidade que a lei deve revelar.
4Quanto ao âmbito, o TC limitou as situações admissíveis (nº 33) aos casos em que “esteja em causa a dignidade de quem pretende (ser auxiliado a) morrer, isto é, a sua atuação como sujeito autorresponsável pelo seu próprio destino num momento já próximo do final”. Ou seja: aos “casos em que uma proibição absoluta da antecipação da morte com apoio de terceiros determinaria a redução da pessoa que pretende morrer, mas não consegue concretizar essa intenção sem ajuda, a um mero objeto de tratamentos verdadeiramente não desejados ou, em alternativa, a sua condenação a um sofrimento sem sentido face ao desfecho inevitável“.
Esclareceu ainda que a “linha de princípio orientadora”, a “diretriz”, para a determinação dessas situações passa por não estar em causa “uma escolha entre a vida e a morte, mas, mais rigorosamente, a possibilitação da escolha entre diferentes modos de morrer: nomeadamente, um processo de morte longo e sofrido versus uma morte rápida e tranquila”, desde logo “tendo em conta a inutilidade do sofrimento – ao menos da perspetiva de quem sofre – perante um desfecho certo”.
5 Quanto ao procedimento a seguir, e partindo da ideia de que, perante a vida humana, o Estado de direito democrático “não pode ser neutro”, “nem pode ser indiferente” (nº 30 e nº 33), cabendo-lhe antes um exigente dever de a “proteger e promover”, o TC sublinhou (nº 33) que este “esforço de proteção tem de partir da consideração da situação de vulnerabilidade e de sofrimento das pessoas” em causa (“razão acrescida” para deverem ser defendidas “contra atuações precipitadas ou determinadas por pressões sociais, familiares ou outras”), e que, “do ponto de vista constitucional, a morte voluntária não é uma solução satisfatória e muito menos normal, pelo que não deve ser favorecida“, devendo ser promovida “antes a vida e a sua qualidade, até ao fim“.
Para além de a lei ter de estabelecer “garantias suficientes” de que a decisão da pessoa representa “uma genuína expressão da autodeterminação esclarecida de quem a toma”, daqui resulta a consequência, “com fundamento na dimensão objetiva do direito à vida consagrado no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição”, de o legislador estar nesta matéria obrigado a “adotar um sistema legal de proteção orientado para a vida”, já que “é seguro que na ordem constitucional portuguesa o apoio de terceiros à morte, mesmo que autodeterminada, não representa um interesse constitucional positivo”, salvo na presença das situações excecionais apontadas.
6E quanto às exigências de clareza e determinabilidade da lei, o TC sustentou (nº 33) que “o dever de proteção da vida (e, bem assim, da autonomia) de quem pretende antecipar a sua morte por se encontrar doente, numa situação de grande sofrimento e sem perspetivas de recuperação, impõe uma disciplina rigorosa quanto às situações – os casos típicos – que justificam, segundo a opção legislativa, o acesso à morte medicamente assistida e garantias procedimentais robustas e adequadas a salvaguardar a liberdade e o esclarecimento do paciente e, outrossim, a assegurarem o controlo da verificação concreta dos casos previstos. Só desse modo se cumprem as exigências de certeza e de segurança jurídica próprias de um Estado de direito democrático, garantidoras de que a antecipação da morte medicamente assistida se contém dentro dos limites que a justificam constitucionalmente, face ao dever de proteção decorrente da inviolabilidade da vida humana”.
Por isso, “as situações em que a antecipação da morte medicamente assistida é possível têm … de ser claras, antecipáveis e controláveis desde o momento em que aquela prática se encontre estabelecida normativamente, devendo o procedimento assegurar a determinabilidade controlável das inevitáveis indeterminações conceituais. Incumbe ao legislador, por esta via, prevenir a possibilidade de indesejáveis e imprevistas «rampas deslizantes»”.
7 De acordo com a decisão do TC, e em resumo, o legislador que pretenda legalizar a eutanásia ou o suicídio assistido estará limitado a fazê-lo quanto às situações de doença em que se perspetiva “um desfecho certo” e “inevitável” (ou seja, “num momento já próximo do final”); estará vinculado a definir um procedimento para tal que represente adequadamente “um sistema legal de proteção orientado para a vida“; e a lei terá de ter um conteúdo tal que as situações admissíveis terão de ser “claras, antecipáveis e controláveis”.
8Tendo o TC assim definido os critérios genéricos para a avaliação constitucional de qualquer solução legal nesta difícil matéria, a verdade é que, na mesma decisão de 2021, e por força do respeito pelo princípio do pedido, não estava autorizado a aplicá-los àquela lei em concreto, a não ser em pequena parte.
Na verdade, tendo o pedido de fiscalização preventiva que o Presidente da República (PR) então formulou sido limitado essencialmente à apreciação da constitucionalidade do artigo 2º, nº 1, da lei, e, neste, na parte relativa a dois conceitos nele utilizados (o de “sofrimento intolerável” e o de “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico”) o TC centrou-se na apreciação da constitucionalidade da utilização pelo legislador desses conceitos (nomeadamente face à referida exigência constitucional de especial clareza e determinabilidade).
Nesse juízo, o TC considerou inconstitucional (nº 48), por ser insuficientemente indeterminado, o segundo daqueles conceitos, tendo considerado haver uma “manifesta insuficiência da densificação normativa da respetiva previsão legal”, tornando-o, por isso “inapto, por indeterminação, para disciplinar em termos previsíveis e controláveis as condutas dos seus destinatários”.
Quanto ao conceito “sofrimento intolerável”, o TC concluiu (nº 42) pela sua suficiência constitucional, na medida em que “afirmar que o sofrimento é um fenómeno privado – idiossincrático, único ao sujeito – não significa que esteja à margem de qualquer objetivação, ou que seja inapreensível por terceiros, cingidos à aceitação acrítica – meramente empática – do relatado na primeira pessoa pelo paciente; … o reconhecimento de que o sofrimento, ainda que fortemente subjetivo, permanece heteroavaliável e verificável, usando para tanto, nas suas expressões não estritamente fisiológicas, ferramentas desenvolvidas por ramos da ciência médica como a psiquiatria ou a psicologia, suporta o entendimento de que o critério normativo situação de sofrimento intolerável, pese embora amplo e interminável, desprovido da definição de situações concretas, não é, em si mesmo, indeterminável”.
9Nesta decisão, e porque processualmente não o podia fazer, o TC não apreciou assim a constitucionalidade, face à exigência de as situações serem “claras, antecipáveis e controláveis”, do conceito “doença incurável e fatal” (a outra situação de morte medicamente assistida então prevista), nem de quaisquer outros conceitos constantes da lei.
Por outro lado, e pela mesma razão, também não confrontou quaisquer aspectos da lei relativos ao procedimento clínico e administrativo da morte medicamente assistida (constantes dos seus artigos 3º a 26º) com a necessidade constitucional de consagração de “um sistema legal de proteção orientado para a vida“.
Por fim, o TC também não fez um juízo quanto à validade constitucional em si mesmas (ou seja, face à delimitação que havia feito do âmbito das situações admissíveis) das duas situações em que a lei então admitia a morte medicamente assistida: a “doença incurável e fatal” e a “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico” (sempre com exigência cumulativa de verificação de uma situação de “sofrimento intolerável”).
No primeiro caso, porque isso também lhe estava vedado, pela mesma razão processual apontada.
No segundo caso, porventura porque entendeu que, tendo concluído pela inconstitucionalidade do conceito utilizado pela razão referida (“manifesta insuficiência da densificação normativa”), seria desnecessária outra apreciação de constitucionalidade.
A lei aprovada em 9/12/2022
10A lei agora aprovada pela terceira vez (na sequência, em primeiro lugar, desta decisão do TC e, depois, do veto político com que o PR devolveu a sua segunda versão) apresenta alterações em relação à lei que o TC apreciou (nos segmentos referidos) em 2021, das quais se destacam a introdução de um artigo de definições (com o que se pretendeu responder à decisão do TC, procurando densificar os conceitos principais que a lei utiliza) e, principalmente, o alargamento do âmbito das situações admissíveis que resultou desse artigo.
Quanto ao conceito que havia sido considerado inconstitucional, o legislador eliminou a referência ao “consenso científico” e densificou-o nos seguintes temos: considera-se “lesão definitiva de gravidade extrema, a lesão grave, definitiva e amplamente incapacitante que coloca a pessoa em situação de dependência de terceiro ou de apoio tecnológico para a realização das atividades elementares da vida diária, existindo certeza ou probabilidade muito elevada de que tais limitações venham a persistir no tempo sem possibilidade de cura ou de melhoria significativa” – artigo 2º, alínea e).
O evidente alargamento da previsão legal resulta de se terem substituído os primitivos conceitos “doença incurável e fatal” e “sofrimento intolerável” (artigo 2º, nº 1, da primeira versão da lei), pelos conceitos, respectivamente, de “doença grave e incurável” (definida como “doença que ameaça a vida, em fase avançada e progressiva, incurável e irreversível”) e “sofrimento de grande intensidade” (definido como “sofrimento físico, psicológico e espiritual, com grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa”): artigo 2º, alíneas d) e f).
11Relativamente a este primeiro conceito, a alteração legal representa a resposta directa e frontal ao “repto” que o PR lançara, naquele veto, nos seguintes termos:
“Admitamos que a Assembleia da República quer mesmo optar por renunciar à exigência de a doença ser fatal, e, portanto, ampliar a permissão da morte medicamente assistida, ou seja do suicídio medicamente assistido e da eutanásia.
Se assim for, alinhará pelos três Estados europeus citados pelo Tribunal Constitucional e pela Espanha – que, entretanto, aprovou lei no mesmo sentido -, os quatro com solução mais drástica ou radical, e afastando-se da solução de alguns Estados Federados norte-americanos, do Canadá e da Colômbia. Aí suscita-se uma questão mais substancial.
Corresponde tal visão mais radical ou drástica ao sentimento dominante na sociedade portuguesa?
Ou, por outras palavras: o que justifica, em termos desse sentimento social dominante no nosso País, que não existisse em fevereiro de 2021, na primeira versão da lei, e já exista em novembro de 2021, na sua segunda versão? O passo dado em Espanha? …
Trata-se de saber em que bases se apoia a opção pela solução mais drástica e radical, se for essa a opção da Assembleia da República.
Note-se, ainda, que o que está em causa é o entendimento da Assembleia da República – ao ponderar o direito à vida, de um lado, e a liberdade à autodeterminação e realização pessoal, do outro – quanto ao sentimento dominante na sociedade portuguesa.
Sobretudo, atendendo a mudança operada em apenas nove meses. Exigia-se doença fatal. Passar-se-ia agora a dispensar tal exigência”.
Perplexidades
12Entre as duas opções relativas ao conceito de “doença incurável” – a menos ampla (“fatal”), que vinha da versão anterior, e a mais ampla (“grave”) – o Parlamento escolheu conscientemente aquela que é caracterizada pelo PR como “drástica e radical”.
Independentemente do juízo político que essa opção mereça (e que, no caso do PR, foi de certo modo implicitamente antecipado), o Parlamento não teve suficientemente em conta que a opção político-legislativa era constitucionalmente condicionada pela análise da questão firmada pelo TC.
13 Na verdade, as circunstâncias em que o Parlamento aprovou esta nova lei são diferentes das que rodearam a aprovação da sua primeira versão.
Não no plano partidário ou político em geral, nem quanto à existência de uma maioria favorável à sua aprovação.
Mas sim quanto ao facto de, agora, o legislador ter actuado num contexto em que já conhecia os parâmetros constitucionais com que o TC balizou a regulação legal desta matéria tão complexa.
14Pareceria assim expectável que o legislador tivesse aproveitado a sua nova intervenção para consagrar de forma clara um procedimento que não fosse neutro ou indiferente e, principalmente, para restringir as situações admissíveis a casos verdadeiramente excepcionais.
A nova lei escolheu o caminho inverso. Não restringiu o âmbito da primeira versão, nem sequer o manteve, antes o ampliou.
15Ora, a justiça constitucional, como espaço de argumentação racional, só faz sentido se se atender à sua fundamentação: as decisões do TC desacompanhadas da argumentação que as sustenta são meros actos de poder sem sentido. É que o TC não é outro legislador, não é um segundo legislador: é um órgão de controlo das soluções legais face à (interpretação que faz da) Constituição.
Assim, as decisões do TC abrem sempre necessariamente um espaço de diálogo de razões com o legislador: este, destinatário da decisão jurisprudencial, terá sempre um espaço maior ou menor de interpretação dessa decisão, na definição das consequências a tirar para a nova legislação a fazer, se for caso disso, tendo em conta a interpretação constitucional fixada pelo TC, que substitui aquela que o legislador havia efectuado.
Nesse espaço de liberdade, o legislador, ao agir de novo, estará a concretizar esse diálogo, a agir nos espaços abertos ou apontados pelo TC.
Mas por isso mesmo é primordial conhecer bem a fundamentação da decisão, em todas as suas cambiantes, e não apenas a parte decisória.
Ou seja, só há verdadeiro diálogo quando as partes se ouvem (no caso, se lêem).