No conto de Hans Christian Andersen de 1843 intitulado O Patinho Feio narra-se a história de um pequeno pato que, dadas as suas diferenças face a todos da sua família, é gozado e ridicularizado pela sua fealdade apenas para, no epílogo, se acabar descobrindo que tão escarnecida personagem não era nada mais nem menos do que um cisne, animal muito mais belo, vistoso e esplendoroso. A moral da história, inclusiva como se diz por estes dias, reside então na constatação que a diferença, por si só, não deve ser motivo de gozo e escárnio, uma vez que por baixo dessa diferença pode florir algo belo e valioso que acabe por transcender todos aqueles que antes lhe apontavam o dedo e gargalhavam às suas custas.

No mundo real, desde 2015 alvo de inédita campanha de escárnio e maldizer, a figura do patinho feio encarnou em Donald Trump. De tudo o homem foi acusado, desde ter as mãos pequenas demais, ser gordo, boçal, mal-educado, burro, até ter uma peruca, ou ser um perigoso violador, um flagrante ladrão, uma fraude gigante, ser cor-de-laranja, despenteado, falar alto de mais, ser rude e ridículo, isto, claro, além dos clássicos epítetos de populista, mentiroso, racista, xenófobo, homofóbico, agente russo, espião e nazi, não esquecendo os clássicos da era Covid que o fizeram negacionista, anti-ciência, apologista de ingestão de lixívia, de produtos desinfectantes de aquários ou medicamentos desparasitantes para cavalos, isto enquanto, imagine-se, teve o topete de sugerir desde o início que o vírus teria vindo do laboratório vizinho do famoso mercado chinês, sendo, ainda, mais recentemente, comparado a Hitler e Mussolini, caracterizado pela generalidade dos media como um louco genocida, fascista, inimigo da democracia, incitador ao ódio, maníaco da guerra, um claro percursor do fim do mundo, espécie de cavaleiro do apocalipse.

Ainda assim, Donald, o patinho feio, tenebroso, deplorável, hediondo e odioso ganhou as eleições tendo, tal como em 2016, roubado indecentemente à primeira futura mulher presidente do EUA, ainda para mais neste último caso uma senhora de ascendência jamaicana e indiana que se dizia afro-americana, a presidência dos EUA. Deste modo, não apenas Trump é apresentado como uma afronta a todas as mulheres como, dada a cor da pele desta mulher em concreto, contra todos os negros ou, já agora, todos os não-caucasianos dos EUA, senão mesmo no mundo inteiro. No fundo, Trump, o patinho horrendo e pestilento, veio estragar a festa do Bem, da Virtude e da, para citar um slogan conhecido, “decência” que o Partido Democrata planeara para todos nós, ainda que à socapa e sem respeitar a magna decisão das eleições primárias por si próprio organizadas. Já Kamala, de acordo com as capas das grandes publicações internacionais, mesmo que vice-presidente em exercício, trazia consigo a virtude democrática, a “alegria” e a promessa de salvar o mundo da tragédia personificada no patinho feio Trump.

Felizmente, assim não foi. O patinho fez-se cisne democrático, ainda que para isso tivesse de contratar 200.000 fiscalizadores de mesas de voto e 50 advogados por cada “swing State” num trabalho hercúleo de luta eleitoral que conseguiu certificar uma eleição que os “especialistas” garantiam estar no democrático bolso dos democratas. O feito, imagina-se, para quem viva e respire dentro da não menos democrática bolha do jornalismo de “referência”, apenas pode parecer absurdo, lamentando-se agora comiserada e democraticamente a falência da democracia norte-americana que não foi capaz de democraticamente gerar o democrático resultado que as democráticas instituições nos garantiram ser o melhor — para a democracia.

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Já para quem viva, respire e pense fora dessa bolha, o feito de Trump não apenas era expectável — em correndo o acto eleitoral dentro do normal e regular funcionamento das instituições — como absolutamente desejável. Desde logo, havia o seu mandato para comparar com o de Biden-Harris. Aí, não havia como mascarar o falhanço completo da política interna e externa dos últimos quatro anos: desde a catástrofe económica causada em larga medida por uma política energética caracterizada por uma cínica anuência com a histeria climática patrocinada pelas grandes corporações globais, agravada pela guerra e múltiplos conflitos que, por milagre, Biden-Harris conseguiram semear pelo mundo inteiro, culminando num incessante e indecoroso ataque às mais elementares instituições, liberdades e garantias dos cidadãos praticado por essa mesma administração, quer a coberto da loucura sanitária Covid, quer em nome da novel revolução woke que tomou de assalto o Partido Democrata.

Já do outro lado, entre 2016-20, com Trump, o patinho alegadamente maníaco, guerras não houve nenhuma (um inédito presidencial nos EUA em décadas), a economia cresceu distribuindo frutos por toda a população, em particular a mais afectada pela deslocalização industrial da globalização, acordos de paz floresciam no Médio-Oriente, isto, claro está, apesar de toda a guerrilha mediática, política e judicial que o Partido Democrata, sem quartel e com poderosos aliados dentro do próprio Partido Republicano, moviam de forma diária e ininterrupta contra Trump.

No entanto, não apenas de singelas comparações práticas vive a importância da vitória de Trump. Muito mais profundo do que isso, e destilando a realidade ao essencial, esquecendo a propaganda que, quanto mais não fosse pelo ridículo uníssono com que foi feita deveria fazer estranhar o mais incauto observador da realidade política — não parece ser o caso em Portugal onde a “inteligência” comentadora e analista especialista da especialidade política vive genérica e confortavelmente alienada num mundo de repetição acéfala do que se diz “lá fora” nos jornais de “referência”, uma repetição mimética parola e pobrezinha, é certo, mas que garante o conforto de uma narrativa única onde quem ouse destoar logo é apelidado de fascista —, há um campo de análise mais profundo onde a própria acção  da propaganda mediática deve ser levada em conta. Trocando por miúdos, a verdadeira questão que escapa a quem vive anestesiado na confortável mama que a grande teta mediática ejacula junto com a devida compensação pecuniária garantida pelos patrocinadores, é simples: que tem Trump de tão ameaçador para os poderes instalados de forma que estes tenham, de modo desabrido e pouco cauteloso, em uníssono, derivado no campo da pura propaganda com intuito de impedir o seu sucesso? Ou, por outras palavras, por que razão assusta tanto Trump os poderes capazes de moldar a narrativa mediática hoje em dia tornada largamente monotemática?

A resposta residirá muito provavelmente não apenas em Trump propriamente dito, mas muito mais naquilo que Trump simboliza — a reacção, rejeição e combate ao admirável mundo que, na última década, esses mesmos poderes nos quiseram fazer acreditar que seria a mais justa e virtuosa criação sociopolítica levada a cabo para “o nosso próprio bem”.

Aqui, convém recuar no tempo, até 2011, mais especificamente aos 59 dias que decorreram entre 17 de Setembro e 15 de Novembro desse ano, período onde a extrema-esquerda ocupou literalmente Wall Street bradando por justiça para os 99% contra o 1% que, segundo eles, ao controlar o sistema financeiro global, acabava, à sorrelfa, de escapar-se a multas, prisões e falências pelas mãos dos “bailout” que desde 2009 haviam resgatado o sistema financeiro do colapso generalizado — bem  como distribuído generosos bónus anuais. A luta da extrema-esquerda, já aí degenerada no marxismo dito cultural que procurava nas minorias étnicas, raciais e sexuais os oprimidos que a pujança do liberalismo económico havia extinguido no antigo operariado, apresentava, no entanto, uma novidade: ressoava com grande parte da população. Não apenas a denúncia de injustiça social face aos despojos do crash de 2008 aparecia às pessoas como justa como, mais importante, faziam-se sentir já em pleno os efeitos de uma década de desindustrialização ocidental em nome de baixos custos em mão-de-obra quase escravizada numa China entrada na OMC desde Dezembro de 2001.

O dumping do baixo custo operacional chinês garantiu fortunas aos grandes poderes económicos globais, é certo, mas também um custo enorme para as classes médias e baixas ocidentais, em particular a mais dinâmica norte-americana que antes vivia dessa indústria entretanto exportada para o terceiro mundo. Este, é verdade, desempobreceu, as bolsas valorizaram, a economia internacional e o comércio floresceram, mas, ainda que despercebidamente e sem que alguém lhes prestasse a atenção devida, tudo isso a expensas dos acima referidos esquecidos da globalização. Ou seja, a extrema-esquerda reivindicava finalmente algo com o qual muita gente concordava. Uma consequência imprevista foi o golpe de asa tecnocrata que se seguiu: já que a extrema-esquerda havia, entretanto, abraçado a questão cultural, então os poderosos donos da globalização, como forma de garantir paz social, compraram essa vanguarda revolucionária que ocupava Wall Street patrocinando e assumindo, mesmo que apenas no papel, as suas causas culturais — para que as económicas caíssem de novo no esquecimento.

Foi desse modo que o nosso mundo, subitamente, mudou. Onde antes a extrema-esquerda desfilava contra a banca opressora e exploradora passaram então as grandes corporações, empresas e conglomerados financeiros a juntar-se a essa mesma extrema-esquerda financiando-a com bandeirinhas arco-íris, acções LGBT, investimento em clínicas transexuais (um negócio rentável, veio a verificar-se), filmes e séries onde pululam minorias sexuais, raciais e demais desgraçados oprimidos, num desfile crescentemente grotesco que culminou, entretanto, na mais perfeita loucura, assim ao estilo do freakshow circense, com direito a Miss em Portugal e na Holanda armadas de pila e maçã de Adão, bem como divas austríacas do Eurofestival da canção adornadas de barba cerrada.

Naturalmente, a extrema-esquerda, triunfante na guerra cultural, agora que o mainstream propagandeava as suas “batalhas” e “causas” enquanto lhe enchia os bolsos de subsídios e patrocínios, aburguesou-se, ronronando e rebolando no feno que nem leão amansado e satisfeito. A esquerda moderada, cheirando a oportunidade, juntou-se-lhe, efectivamente radicalizando-se também. Já os grandes interesses garantiram desse simples modo que, tal como Lampedusa vaticinara em Il Gatopardo, por vezes havia que mudar tudo para garantir que nada mudaria verdadeiramente. Fora da equação? A grande mole, massa, “maioria silenciosa” que, a partir de aí, além de empobrecida pela globalização, se via agora todos os dias acossada pela sua própria comunicação social como racista, homofóbica e quanto mais epítetos houvesse, isto enquanto via a agenda dita woke, um outro nome para louca, entrar-lhe casa adentro, para as suas salas de estar e a intimidade dos quartos dos seus filhos.

Entra, então, em cena o patinho feio Trump. O homem que disse que o sistema ia nu. Que acusou os poderes instalados no crony capitalism global de esquecerem a base industrial dos EUA, incluindo as minorias étnicas que, apesar dos virtuosos discursos dos democratas, da unanimidade paternalista da TV e dos especialistas, no final do dia, apenas querem os bolsos tão cheios de sonhos e esperanças quanto os outros todos. O homem que não teve medo de cair no ridículo de dizer que um homem é um homem e uma mulher é uma mulher. O homem que, sozinho, para escárnio de todo o sistema político-mediático Ocidental, veio dizer aquilo que a maioria silenciosa queria que fosse dito, mas que, isolados, abandonados em casa, perante o uníssono dos media mainstream, imaginavam já serem os únicos a pensar — eis a união inquebrantável entre os deploráveis e o patinho feio que os veio personificar.

Trump não desiludiu. De patinho fez-se então herói, figura quase mítica que por todo o calvário passou: perseguido, preso, julgado, até mesmo alvejado, quase morto, apenas para de imediato, ao vivo e a cores, mitologicamente ressuscitar, de punho no ar, gritando, bradando, ecoando o apelo à luta, à revolução, contra os poderes instalados, contra o controlo político, mediático e social, contra a loucura cultural woke, contra esse mundo que nos querem impingir, contra o politicamente correcto,  com coragem, sem pejos, sem medos, sem hesitações.

Os efeitos da vitória de Trump não poderão, portanto, deixar de ser profundos na medida em que marca o triunfo de uma enorme reacção popular que, politicamente organizada, a cavalo de uma revolução mediática inédita nos últimos 150 anos, ora rompida e destruída a muralha do mainstream, exige o realinhamento completo do compasso cultural e moral do espaço público social. As consequências desta viragem estrutural nos EUA, junto com as suas naturais consequências económicas — algo igualmente inédito desde Reagan — serão, pelo menos, tão significativas para o establishment ocidental quanto foram aquelas que, por diversas razões, nos levaram no caminho dos últimos anos, apenas que mais súbitas e rápidas.

Em Trump sendo bem-sucedido, coisa que lhe desejo, não apenas o wokismo terá os seus dias contados como novos dias também virão na relação — cultural, política, económica — dos EUA com o mundo, em particular o Ocidente, ao retomar o seu papel como farol máximo do desenvolvimento, da prosperidade e da liberdade. Resta saber se os europeus saberão tocar essa guitarra. Se não souberem, ficarão para trás, pelo que também na Europa o rumo proposto por Trump fará o seu caminho. Já os portugueses, esses, naturalmente alienados e sempre focados na moda do verão passado, como de costume, não estão nem aí; por ora apenas vituperam o absurdo patinho feio sem verdadeiramente compreender a enorme mudança que está em curso — tal como os perigos e oportunidades que esta traz consigo.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não refletem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.