Uma das primeiras tarefas de que Rui Moreira me encarregou quando assumi o cargo de chefe do seu gabinete na Câmara do Porto, em 2017, foi negociar com o Governo a passagem para o Município do antigo Quartel de Monte Pedral. Para quem não conhece, é uma antiga instalação militar bem no coração da cidade, ao longo da Rua da Constituição, numa área que permite a edificação de mais de 50 mil metros quadrados de habitação. Ou seja, é ouro no deserto.

Rapidamente encontramos o contrato que em 1904 tinha passado a posse do terreno para o Ministério da Guerra, que ali se comprometia a instalar um quartel de cavalaria. Mas com uma cláusula de reversão a favor da Câmara do Porto, caso o quartel fosse encerrado. E foi com basse nessa cláusula, que pedimos ao Ministério da Defesa que nos entregasse este extraordinário terreno, abandonado pelo Estado.

Presto homenagem ao então ministro da Defesa Nacional, João Gomes Cravinho, que de imediato acedeu ao pedido que enviei ao seu gabinete e, sem ónus, aceitou assinar a reversão do espaço. Fez-se uma bonita cerimónia, com direito a Primeiro-Ministro e tudo, e Rui Moreira lá anunciou um grande projeto de habitação acessível para a classe média e residências para estudantes, a ser executado através de um concurso público e investimento privado. O seu vereador do urbanismo estimou, no seu discurso perante António Costa, que as obras se iniciariam no ano seguinte e que decorreriam por cerca de dois anos.

Estamos em 2023, tudo isto deveria estar concluído há muito e habitado pela tal classe média com renda acessível. Nas palavras do discurso de Rui Moreira, o Porto teria hoje mais de 1% de população, graças ao projeto. Mas no Quartel de Monte Pedral, expirados todos os prazos, só há ruínas e não está, sequer, qualquer concurso público lançado e muito menos se perspetiva qualquer obra. Nem ali nem em Monte da Bela (Campanhã), terreno já então municipal e para o qual, no mesmo dia, Rui Moreira anunciou projeto idêntico. Mas que nunca saiu do papel nem está para sair.

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E também nada existe em Lordelo, onde Rui Moreira também anunciou outro projeto de habitação acessível, que só em honorários a arquitetos distribuiu mais de 1,5 milhões de euros (um recorde), mas cuja obra nunca avançou. Tal como nos outros casos, não haverá uma casa em Lordelo até ao fim dos mandatos do atual executivo.

Não se pode dizer que os três processos estejam na estaca zero, mas quase, pois tudo o que fizeram até hoje foi concursos de ideias, loteamentos e pagar por isso milhões de euros em honorários. Mas, nos três casos, não há obras, não há concursos, não há projetos, não há prazos e não haverá qualquer casa ou vislumbre de casa nos anos mais próximos.

Contudo, há duas semanas, as portas do Quartel de Monte Pedral abriram-se. Não para que entrasse qualquer máquina ou empreiteiro, mas para uma exposição de arte urbana, que aproveitou as paredes abandonadas do velho quartel. Para tal, a Câmara convidou “artistas de rua” que ali pintaram os seus murais. Fui lá ver e encantei-me com muitos deles, esplendorosos e coloridos e até uma citação de Sophia, que diz que o Porto é um sentimento.

A festa estava bonita e até tinha cerveja, mas faltava-lhe aquilo que mais carateriza a arte urbana: irreverência e intervenção social.

O que ali estava, nas paredes chorosas do velho quartel, era uma intervenção fofinha e bem lavada, criteriosamente bem-disposta. Era bonita, certamente. Mas não era arte de rua, por estar encafuada entre os muros de um velho e decrépito quartel, ainda ajudados pelo arame farpado lá colocado pelo Estado Novo. E porque lhe faltava a acidez que sempre carateriza a arte urbana. Sem crítica, sem tocar no elefante que ali estava sentado – a habitação – a exposição era, apenas, uns desenhos que não incomodavam quem paga a conta.

E o que é que isto tem a ver com o Centro Comercial STOP, há muitos anos transformado por centenas de músicos num autêntico Centro Cultural STOP, onde fervilham os mais embrionários laboratórios de ensaio da música portuguesa contemporânea? Tudo. Vejamos os dois aspetos fundamentais:

  1. Tal como no setor da habitação e do urbanismo, a Câmara do Porto foi incapaz de encontrar soluções para problemas antigos e conhecidos. Não reformou, não antecipou, não resolveu e, mesmo conhecendo o problema e tendo à mão a solução, não executou em tempo.
  1. Tal como no Quartel de Monte Pedral, a Câmara do Porto e o seu presidente demonstram ter medo da cultura de garagem, da cultura de rua, da rua, da irreverência e, no fundo, do seu próprio programa cultural, enunciado em 2013 por Paulo Cunha e Silva.

O Centro Comercial STOP, mandado encerrar por Rui Moreira em 2023, é o mesmo que em 2013 existia quando tomou posse como presidente da Câmara, prometendo protegê-lo. Tem as mesmas condições de segurança ou insegurança, como ambos constatamos em campanha em 2013 quando o visitámos em busca de votos. Tem a mesma utilização, quase os mesmos músicos e o mesmo enquadramento ou desenquadramento legal. Ou seja, nada mudou. O STOP é este STOP há mais tempo do que Rui Moreira é presidente da Câmara: dez anos.

Enunciado por Paulo Cunha e Silva como um exemplo da cultura de garagem da cidade líquida que queria estender a todo o território, o STOP tinha, em 2013, todos os mesmos problemas e condições de hoje. E Rui Moreira sempre o soube. Mas, durante dez anos, a Câmara do Porto nunca se preocupou nem em encerrá-lo nem em encontrar, antes de ter de o fazer, uma solução alternativa de futuro.

Quando em 2023 o decidiu encerrar, escondeu-se atrás de pareceres dos “bombeiros”, ocultando que impulso levou os “bombeiros” a redigir tais pareceres, mas sobretudo, ocultando que quem tutela os Sapadores do Porto é o próprio presidente da Câmara. Sim, poucos sabem que os Sapadores do Porto são um departamento municipal que depende diretamente do Presidente da Câmara, o mais alto responsável pela proteção civil da cidade.

Mais grave, o encerramento foi ditado sem aviso ou notificação, pela calada de uma madrugada, sem solução alternativa, à força, com a presença de polícias municipais à paisana, sem sensibilidade social e sem respeito pelos músicos, pelos seus postos de trabalho e pela economia que geram e que o programa eleitoral de Rui Moreira tanto elogiava. Só quando a rua o assustou, veio oferecer os muros de uma antiga escola municipal para, depois de obras de adaptação, lá instalar os músicos, mas sob a orientação da Câmara, num programa por si tutelado. Não sei se isso incluiria o mesmo “washing” que orientou as consciências felizes dos artistas que pintaram as ruínas do Quartel de Monte Pedral… Mas seria assim ou nada.

Ensaios sim, mas com o controlo da Câmara, num programa municipal, em instalações municipais e quando o mesmo urbanismo que protela espetar o primeiro prego no Quartel de Monte Pedral há seis anos ou corrigir os erros cometidos na Avenida de Montevideu, resolvesse fazer uma obra. Até lá, uma economia que alimenta a família de cerca de 500 músicos, ficaria suspensa. Assim como a sua produção artística, a irreverência e o seu protesto.

Calhou mal a Rui Moreira, pois a Justiça estragou-lhe a estratégia (às vezes acontece) quando um Tribunal sentenciou que o Centro Cultural STOP vai continuar a funcionar. Na opinião do Juiz, a cultura, os postos de trabalho, a economia de muitas microempresas e a dignidade não se podem fechar assim.

Esta semana, li uma crónica de Raúl Almeida no jornal Público sobre este assunto. Este “ilustre” militante do CDS, guindado por Rui Moreira a chefe da sua bancada na Assembleia Municipal, comparava no seu artigo, o Centro Comercial STOP a uma discoteca que ardeu em Múrcia, Espanha, matando 13 pessoas, alegadamente por falta de segurança. Em sua opinião, a tragédia espanhola justificaria o encerramento do STOP. Mas falha Raúl Almeida na sua análise e por duas vezes.

A primeira é ao afirmar que o STOP é igual à discoteca de Múrcia. Ao fazê-lo, levianamente, acusa um Juiz de ser um potencial criminoso, mas também Rui Moreira. Afinal, foi o presidente da Câmara do Porto quem deixou a funcionar o STOP nas mesmas conhecidas condições durante dez anos, sem o encerrar. Sendo assim tão evidentemente perigoso para Raúl Almeida, o que está é a acusar Rui Moreira de uma inaceitável negligência com a duração de dez anos que, só por sorte, não resultou às suas mãos na morte de pessoas.

A segunda falha de Raúl Almeida é, ao fazer tal comparação, estar a colocar-se a si, ao CDS a que pertence e ao movimento supostamente independente de Rui Moreira, no mesmo saco dos populistas de extrema-direita que por aí crescem a olhos vistos nas redes sociais. Porque uma coisa é querermos que a incapacidade de execução da Câmara do Porto em matéria de habitação, de segurança ou de cultura passe por entre os pingos da tinta de artistas de rua (isso foi bem possível no Monte Pedral). Mas outra é usar a morte, a dor profunda de famílias, a tragédia alheia e o medo (sempre o medo) para comparar o incomparável e limpar as asneiras do presidente da Câmara que lhe deu um penacho na Assembleia Municipal.

Trump, Bolsonaro ou Ventura não se atreveriam a tanto, mas Raúl Almeida não tem problemas em enlamear o discurso político portuense. E fá-lo irresponsavelmente, sem sustentação jurídica ou técnica e sem respeito, porquanto quem decidiu manter o STOP aberto foi um tribunal português e sobre o que se passou em Espanha não há ainda, sequer, conclusões sobre as investigações em curso.

Poderia dizer-se que terá sido apenas um momento infeliz de uma pessoa que reconheço ser razoável e que é Raúl Almeida (quem nunca) e que a democracia-cristã lhe resvalou por uma vez para o chinelo. Mas não foi só isso que aconteceu. O artigo agradou sobremaneira ao movimento de Rui Moreira e a sua associação “Porto, o Nosso Movimento”, a avaliar pela partilha do artigo nas suas redes sociais, com palminhas dos vereadores. Os mesmos vereadores que foram incapazes de pôr uma pedra no Monte Pedral, no Monte da Bela, em Lordelo ou na Avenida de Montevideu, mas que apreciam a alegria das pinturas murais da arte lavada.

Fui fundador dessa associação que agregou o movimento independente de Rui Moreira em 2017 e fiz parte da sua primeira direção. Em boa hora a abandonei, em 2020, quando a vi resvalar para o populismo e para os jogos de sombras de partidos como o CDS ou PSD, que se digladiavam pelo controlo de um movimento que se dizia independente. E saí, dizendo o que penso. Não estranho, por isso, que hoje nenhum dos fundadores esteja nos órgãos sociais e que as mais importantes figuras do movimento de Rui Moreira de 2013 se tenham dele afastado a ponto de nenhum aparecer no recente jantar de comemoração de dez anos de governação do Rui Moreira.

Estou a referir-me a Daniel Bessa e Miguel Pereira Leite, ambos cabeças de lista à Assembleia Municipal; a Azeredo Lopes, porta-voz da campanha em 2013 e chefe de gabinete de Rui Moreira; a Nuno Botelho, diretor de campanha em 2013; a Francisco Ramos, três vezes mandatário financeiro; a Guilhermina Rego, número dois da lista de Rui Moreira em 2013 e a tantos outros.

Pode dizer-se que não estiveram presentes por razões diversas ou que isso não é importante. Mas o certo é que esses dez anos deveriam ter sido os suficientes para que os sucessivos executivos de Rui Moreira tivessem sido capazes de construir que fosse uma casa em renda acessível para a classe média ou tivessem sido capazes de encontrar uma solução que permitisse proteger a “cultura de garagem” e “arte de rua” que, tão claramente, estavam inscritas no seu programa cultural e que existe, evidentemente, no STOP.

Aparentemente, o Centro Comercial STOP e o Quartel de Monte Pedral nada têm em comum. Mas, na prática, ambos são vítimas da incapacidade executiva da Câmara do Porto e ambos provam o abandono da política cultural enunciada por Paulo Cunha e Silva, em 2013. E se me avergonho por ter, também eu, participado nesse sonho algures perdido e não ter sido capaz de ajudar Rui Moreira a segurar a sua independência e o seu programa? Seguramente!