Um artigo que publiquei há duas semanas motivou o agrado de muita gente, que discretamente me fez chegar o seu acordo. Não apenas por ter elogiado o trabalho de Tiago Guedes à frente do Rivoli, mas também por ter alertado para a discrepância de investimento realizado e a realizar em exclusivo pela Câmara do Porto (sem o apoio do Estado) na área da investigação do cinema, ou seja, com o Cinema Batalha.

Alguém acrescentou, chamando-me a atenção, que quando as câmaras se queixam de lhes darem competências novas e que não eram suas, sem que o “cheque” do Estado seja suficiente, parece muito estranho que a Câmara do Porto invista tantos milhões num segmento de investigação cultural tão específico sem qualquer ajuda do Governo, quando essa é uma competência histórica do Estado – o apoio à produção e investigação na área do cinema português.

Mas foi sobretudo uma curta referência ao Coliseu do Porto que provocou maiores comentários e manifestações de apoio ao que escrevi, o que me faz regressar ao assunto, que então apenas lateralmente invoquei.

O Coliseu do Porto é propriedade de uma associação sem fins lucrativos. Tal foi a solução que sucedeu à tentativa de aquisição por parte de uma igreja, em 1995. No modelo que vigora desde então, há quatro associados de referência que são detentores de uma espécie de “golden-share”. Três são públicos (Estado, Área Metropolitana e Câmara do Porto), e o outro é a companhia de seguros que sucedeu aos originais proprietários da sala, que em 1995 a pretendiam vender.

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Em 2013, esta associação, que não recebia qualquer apoio estatal e sofria com a “concorrência” da Casa da Música, estava com enormes dificuldades financeiras e não tinha forma de fazer os investimentos necessários em obras, que já então pareciam muito necessárias.

Aproveitando o novo ciclo político, Rui Moreira (CMP) e Eduardo Vítor Rodrigues (AMP), com a concordância do Governo de Passos Coelho, promoveram a eleição de Eduardo Paz Barroso, um apoiante do novo presidente da Câmara, para a presidência da associação. E este encetou algumas reformas. Pese embora o seu trabalho muito meritório, nomeadamente de equilíbrio financeiro e de dinamização programática, a nova direção do Coliseu do Porto não conseguiu encontrar os avultados recursos para realizar a cada vez mais urgente reabilitação da histórica sala.

Na verdade, os associados também nunca se mostraram dispostos a assumir sozinhos tão avultado investimento. O único a chegar-se à frente foi mesmo a seguradora AGEAS, através de um programa de patrocínio considerável, mas, por si só, parecia insuficiente para cumprir a necessária reabilitação. Já os restantes associados de referência, nomeadamente a Câmara do Porto e a Área Metropolitana do Porto, foram sempre dizendo que não o podiam fazer, por impedimento legal, uma vez que não lhes seria permitido intervir financeiramente numa sua participada.

Perante os avisos cada vez mais desesperados de Eduardo Paz Barroso, entretanto reconduzido no cargo por indicação de Rui Moreira e sempre por acordo entre a CMP e a AMP, de que a sala corria já riscos físicos sérios, o presidente da Câmara pediu que se estudassem soluções de financiamento, nomeadamente comunitário. Mas essa hipótese foi também descartada por não haver enquadramento no quadro comunitário.

Eduardo Paz Barroso ainda propôs a Rui Moreira um modelo de aquisição do edifício ou trespasse para o Município. Mas o presidente da Câmara recusou, dizendo que a Câmara não podia ter mais equipamentos culturais em sua posse e que o Coliseu teria de ter vida própria.

Foi perante a urgência e o impasse, que parecia ser um beco sem saída para o Coliseu do Porto, que sugeri em 2019 ao presidente da Câmara do Porto que propusesse à cidade e à Associação dos Amigos do Coliseu uma solução de concessão. Tal e qual o que tinha sido feito com considerável sucesso no Pavilhão Rosa Mota, onde o investimento necessário era até maior, mas onde os privados o assumiram, não deixando a Câmara de manter a propriedade, receber uma renda e ainda dispor da sala 12 dias por ano.

O modelo que propus tinha era semelhante e tinha em atenção os interesses da associação Amigos do Coliseu do Porto, pois previa que no contrato de concessão a promover, o operador privado que viesse a vencer o concurso, nos termos da Lei da Contratação Pública, ficaria integralmente responsável pelos investimentos, cujos termos de referência fariam parte do caderno de encargos e estavam já estudados tecnicamente, por iniciativa da direção do Coliseu.

O modelo previa ainda que o privado fizesse a exploração comercial do edifico, por um período a determinar, mas não poderia descaraterizar nem a função nem a sua arquitetura. Previa-se ainda que o concessionário pudesse pagar uma renda (tal e qual acontece no Rosa Mota) mas que reservasse datas e espaço para que a associação pudesse ter a sua atividade de programação própria. Ou seja, a concessão não mataria a associação, ao contrário, garantia a sua sobrevivência, financiamento e dignidade. Também os direitos dos funcionários eram acautelados, ao serem transferidos, sem perdas sociais, para o concessionário, como normalmente acontece nas concessões.

Tal como tinha sido experimentado com o Pavilhão Rosa Mota, no final do contrato, a associação teria a sua sala devolvida, recuperada e modernizada.

Mas, haveria mercado para ir a jogo neste modelo? Consultamos, para o saber, alguns players do ramo do espetáculo, sobre o seu eventual interesse. A resposta excedeu positivamente a nossa expetativa.

O último passo era político, já que uma operação destas teria de decorrer em clima de consenso (ainda que nunca se espere a unanimidade).

Assim, apesar da maioria absoluta que Rui Moreira tinha então no Executivo, e que perdeu em 2021, o assunto foi por duas vezes alvo de reuniões e discussões no Conselho Municipal de Cultura, que no início de 2020 deu o seu acordo de forma esmagadora, votando a estratégia favoravelmente, sem votos contra.

Finalmente, consultados os outros associados de referência (AMP, Governo e AGEAS) também estes deram publicamente o seu acordo, tendo a Ministra da Cultura mandatado o seu representante na direção para apoiar o processo.

Pela ligação do músico Pedro Abrunhosa ao Coliseu do Porto, nomeadamente por ter liderado o movimento que em 1995 “salvou” a sala das mãos da IURD, abordamos o artista, explicando-lhe a intenção e procurando saber se a sua interpretação acerca do que preparávamos. Pedro Abrunhosa concordou, entusiasticamente com a solução de concessão.

Depois de tudo aprovado nas devidas instâncias e explicado publicamente o projeto de concessão, terminava o mandato da direção presidida por Eduardo Paz Barroso, e cumprindo-se os estatutos e o acordo entre os detentores da dita “golden-share”, era a vez do Estado indicar um nome para a presidência da associação, tendo a Ministra da Cultura escolhido Mónica Guerreiro para o cargo, que assim assumia a presidência com claro e sufragado mandato para promover a concessão. E era esse o estado de arte quando me afastei da Câmara do Porto, desligando-me desse e de todos os outros assuntos municipais.

Confesso a minha perplexidade quando ouvi Rui Moreira, em abril de 2021, já em clima pré-eleitoral, anunciar que, afinal, não haveria concessão, pois ele tinha acordado com a mesma Ministra da Cultura o contrário do que ambos tinham anteriormente decidido e anunciado, à Cidade, aos Conselheiros, ao Executivo, à Assembleia Municipal e aos amigos do Coliseu. Ou seja, as obras seriam afinal pagas em partes iguais pela Câmara e pelo Governo, deixando de fora a AMP e deixando cair a estratégia de concessão aprovada. O espanto era duplo, já que isso não apenas invertia o plano de ambos já devidamente sufragado, como, sem que se explicasse como, parecia ter caído do céu a solução jurídica para a tantas vezes alegada ilegalidade da intervenção financeira dos participantes públicos nas suas participadas.

Mas a maior questão era política e democrática, que tinha a ver com a cascata de decisões e deliberações que órgãos consultivos, deliberativos e executivos tinham tomado sobre a matéria, aprovando a concessão. Em particular, era preocupante que a Assembleia-Geral não tenha sido convocada e que os associados nada tivessem, deste vez, podido dizer sobre a solução anunciada por Rui Moreira.

E assim fomos para umas eleições em que 40% dos portuenses que foram votar, votaram em Rui Moreira, convencidos por Rui Moreira que as obras do Coliseu custariam 3,5 milhões e que seria dinheiro público e municipal a salvar a sala. Tinham a sua promessa. Na notícia que ainda hoje está publicada no portal do Município, não se fala nem condiciona a sua execução ao PRR ou a qualquer outro financiamento comunitário. O problema do Coliseu estava resolvido.

Só que, nem antes nem depois das eleições autárquicas, neste país amorfo e anestesiado, alguém perguntou ao presidente da Câmara ou à Ministra como tal operação seria executada, nem sobre a legitimidade do conveniente anúncio. Como teriam sido resolvidos, por milagre, os problemas legais anteriormente invocados? Estavam os restantes associados de acordo? Foram consultados os conselheiros? O que pensa a Assembleia Municipal de tal ideia? E o Tribunal de Contas, aprovará tal programa?

Só após as eleições autárquicas, voltei a ler, preocupado, sobre o assunto, numa entrevista de Mónica Guerreiro. Percebi então, que a presidente do Coliseu tinha sido abandonada à sua sorte e que, passado o tempo de todas as promessas eleitorais, nunca mais o assunto teria sido tratado e a sala continuava a degradar-se. Legitimamente, a representante do Estado na direção, pedia os 3,5 milhões prometidos em campanha.

Já em Março de 2022, quase um ano após a promessa de que pagaria a reabilitação do Coliseu e questionado pela oposição durante uma reunião de Executivo, Rui Moreira disse o seguinte (cito o que está ainda publicado na imprensa online): “O município do Porto não tem enquadramento legal, nem vontade política para reabilitar o Coliseu, nem arcar com a obra de um equipamento cultural. Não vamos fazer uma obra que é cara. Quando falamos em quatro milhões de euros, sabemos que isso hoje vai derrapar, sem ter enquadramento legal e sem saber depois de quem é a gestão daquilo”. Perante a insistência da oposição, culpou o Governo, “por não ter inscrito a obra no PRR”. Estava ainda em funções a mesma Ministra da Cultura que ajudou Rui Moreira a fazer o extraordinário e surpreendente anúncio de Abril de 2021, de que a Câmara arcaria com responsabilidades.

Hoje, três anos após aprovado um caminho de concessão que, durante a pandemia, poderia ter sido executudo, nem a sala está reabilitada, como não há caminho. Pois nem a promessa de investimento público se cumpriu ou cumprirá (a acreditar na última versão de Rui Moreira) nem existe, agora, qualquer solução à vista. E, em boa verdade, já ninguém sabe a opinião dos conselheiros, do Executivo ou dos Amigos do Coliseu. Nem do mercado, que previsivelmente, terá ficado muito desconfiado acerca de um novo eventual processo de concessão.

Muito estranha é também a afirmação de Rui Moreira de que, caso invista na sala, não saberá de quem é, “depois, a gestão daquilo”. Ora, a direção da Associação é composta, por estatutos, por um representante de cada um dos associados de referência públicos e por um outro, eleito, e que representa os restantes amigos. Ou seja, é composta por um representante da Câmara, indicado por Rui Moreira, que rotativamente ocupa a presidência. Atualmente, trata-se de um diretor numa sua empresa municipal, indicado por Rui Moreira. Faz também parte da direção uma representante da AMP, que é atualmente uma ex-vereadora do PS, ligada ao setor cultural e muito próxima de Rui Moreira. O representante dos restantes associados é Daniel Pires, o conhecido dinamizador do Maus Hábitos, amigo e próximo de Rui Moreira, por si apoiado na eleição para a direção. Finalmente, a direção é presidida por Mónica Guerreiro, que tendo sido indicada pelo Estado, foi diretora Municipal da Cultura, nomeada por Rui Moreira, antes de estar no Coliseu e, tal como os restantes, mereceu o voto favorável da Câmara numa Assembleia-Geral, onde o próprio Rui Moreira fez questão de participar pessoalmente.

Rui Moreira sabe, por isso, muito bem quem gere o Coliseu e pode, até, nas próximas eleições, substituir quem lá colocou e até, indicar o presidente, quando chegar a vez da Câmara o fazer.

E foi por tudo isto que invoquei o desequilíbrio político do investimento no Cinema Batalha, em função da postura municipal relativamente ao Coliseu. Com um pormenor que não é de somenos: se é certo que o Coliseu não é só da Câmara, ele é também da Câmara, com especiais responsabilidades e capacidade de decisão e controlo, como está assegurado nos estatutos da Associação. Já o Batalha é um edifício privado, onde a Câmara paga avultadas rendas (três milhões) e gasta em obras muito mais do que aquilo que, alegadamente, e acreditando no Rui Moreira de abril de 2021, seria necessário para as obras no Coliseu.

A Câmara do Porto, a AMP e o Governo, os restantes associados ou qualquer um de nós, é sempre livre de ter, sobre o Coliseu do Porto, sobre o Cinema Batalha, sobre o Museu do Romântico ou sobre qualquer outro equipamento cultural, uma opinião ou uma estratégia. E todos temos o direito de mudar de opinião ou de nos arrependermos de decisões estratégicas já tomadas e anunciadas. Mas, quando está em causa o interesse e o dinheiro público, não podem instituições como as que estão em causa, decidir sem que, pelo menos, se cumpram os princípios democráticos e de escrutínio, o que neste caso implicaria, pelo menos, explicar melhor a cascata de decisões contraditórios de forma que todos possamos entender, mas também, e sobretudo, fazer regressar as decisões aos órgãos próprios, a começar pela Assembleia-Geral dos Amigos do Coliseu e pelo Conselho Municipal de Cultura.

Neste conselho, criado por proposta de Rui Moreira, onde supostamente se concentram as forças vivas culturais da cidade, votou a proposta de concessão que o próprio lhe apresentou, após duas sessões de discussão. Quem lá está, abnegadamente e pro-bono, merece, no mínimo, outro respeito e consideração.

Bem sei que a palavra dada já não tem hoje qualquer valor e que o que se diz seja pessoalmente, numa entrevista ou num mero sms, já pouco ou nada vale. Mas, pelo menos, que sejam ainda respeitadas deliberações e se explique como se tivéssemos seis anos, que um Município pode investir mais de 10 milhões num equipamento cultural privado, criando despesa corrente permanente, e não pode investir uma parte disso noutro semi-público, onde tem especiais responsabilidades. Um equipamento a que a cidade já se acorrentou. Algo que nunca aconteceu com o Batalha.

A acreditar nos alertas dados então por Eduardo Paz Barroso e lendo as entrelinhas do que nos diz agora Mónica Guerreiro, o Coliseu corre hoje mais riscos do que corria em 1985 com sua venda à IURD. Chega a ser incompreensível que a mesma Câmara que tanto lutou por uma solução que o salvasse, se apresente à cidade, agora, como não tendo vontade político de o salvar, sobretudo, quando sobram milhões para se dedicar à investigação do cinema ou a inventar e reinventar museus que a cidade tinha como consolidados e que estavam preservados.

Eu que em finais do século passado andava pelo jornalismo e pude ver a coragem de quem se amarrou, com Pedro Abrunhosa, na rua Passos Manoel, tenho muita dificuldade em perceber onde andam, silenciosos e complacentes, esses “amigos” do Coliseu, da cultura e da cidade. E pergunto-lhes, passados quase 30 anos: valeu a pena, se agora nada fizerem e nada disserem?