Tiago Guedes, ainda diretor de programação do Teatro Municipal do Porto, anunciou recentemente que deixará o projeto que liderava ao serviço da Câmara do Porto, para passar a dirigir uma das mais importantes instituições de dança contemporânea da Europa, a Maison de la Danse de Lyon.

Conheço bem o Tiago e sei em que condições assumiu, no início do primeiro mandato de Rui Moreira, aquela que o saudoso vereador da cultura Paulo Cunha e Silva apelidava como “a mais difícil tarefa” que tinha pela frente: reabilitar, do ponto de vista da programação, o Teatro Municipal e “devolver o Rivoli à cidade”.

Tiago Guedes teve boas condições para a cumprir esta tarefa, graças à existência das salas que eram do domínio municipal, mas sobretudo graças às aposta e visão de Rui Moreira e Paulo Cunha e Silva, que não apenas perceberam a importância intrínseca das artes performativas na cidade, como entenderam qual era a obra imaterial que importava cumprir. Tudo isto foi feito com a parcimónia devida e, como fazia questão de recordar Paulo Cunha e Silva, sem fazer disparar o orçamento da cultura da Câmara do Porto, que nos seus curtos anos de vereação, se manteve semelhante aos dos tempos de Rui Rio.

Meses antes de se começar a cumprir o Rivoli, Rui Moreira tinha enfrentado a sua primeira campanha eleitoral, assumindo com enorme coragem a aposta na cultura (mesmo contra o que aconselhavam os estudos de opinião sobre o tema) e contra as “obras faraónicas” propostas por outros candidatos. “Não precisamos de mais templos, precisamos que os que temos cumpram a cultura no Porto”, dizia o então candidato independente, que modestamente ajudei a eleger por duas vezes, em 2013 e 2017.

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Tiago Guedes teve o mérito de fazer parecer fácil o que era difícil, mesmo que isso, por vezes, desvalorizasse o seu trabalho, que não sendo isento de erros (como não é nenhum), cumpriu além da espectativa, no tempo em que foi feito, no impacto que produziu, no papel que teve na internacionalização do Porto, no apoio às companhias da cidade, no seu caráter inclusivo e na elevação do nível cultural e sensibilidade artística dos portuenses.

Tiago Guedes teve outro mérito que aprecio muito nos dias de hoje. Nunca tolheu a sua própria liberdade e nunca se coibiu de ter ideias e convicções, mesmo políticas. Defendeu, quando entendeu, de forma desassombrada aquilo em que acreditava, mesmo que isso tivesse implicado um afastamento político do Executivo que governava o Porto. Apoiou nas últimas autárquicas candidaturas socialistas e, salvo melhor informação, não o vi empenhado na campanha de Rui Moreira, contrariamente ao sucedido em 2017.

Recordo de Tiago Guedes, também, alguns atos controversos, mas que revelaram coragem e, sobretudo, coluna vertebral. Foi o caso do que assumiu em algumas entrevistas onde deixou de lado a hipocrisia e falou sobre o passado do Rivoli, provocando a ira por parte de alguns membros do Executivo de então de Rui Moreira. Ou o momento em que acabou injustamente acusado de censura, por não ter deixado publicar, no “seu” teatro, uma folha de sala que ofendia, a despropósito, a memória e a dignidade de Paulo Cunha e Silva.

Por mais que se possa dizer que não “devia” ou não “podia” ter feito ou dito o que fez e disse, Tiago Guedes defendeu, ao fazê-lo, um valor hoje muito raro: o dos princípios.

Por tudo isso e por muito mais que aqui não cabe, Tiago Guedes deixa o projeto de Rui Moreira e sai para a Europa pela porta grande, ficando um projeto que soube equilibrar, entre as limitações do que é suportado por dinheiros públicos e a seriedade programática, artística e intelectual.

Em sentido oposto parece caminhar o projeto do Cinema Batalha, onde já terá sido gasto mais orçamento municipal do que em todo o projeto do Rivoli, mas que não tem ainda, sequer, data ou vislumbre para abrir.

O edifício foi alugado a privados pela Câmara Municipal do Porto em janeiro de 2017, por um período de 25 anos e pelo valor de três milhões de euros. As obras de reabilitação respetivas foram lançadas no final de 2019, pelo valor de quatro milhões de euros (que, seguramente, acabará a ser muito superior) tudo integralmente suportado pelo Município. Nestes dois contratos estão, por isso, implicados mais de sete milhões de euros, só para alugar e reabilitar um edifício que, dentro de alguns anos, será devolvido aos privados.

Cumprido mais de um quinto do prazo a que a Câmara se comprometeu e realizados já investimentos de milhões na sua reabilitação, o Cinema Batalha continua fechado e nenhuma das sucessivas datas anunciadas para a sua abertura foi cumprida. A mais recente notícia sobre o assunto já não aponta data, mas nela a Câmara gaba-se da colocação de uma “nova tela” que protege a obra, o que faz prever que não está para breve o seu fim.

Além dos três milhões de alugueres e dos mais de quatro milhões da obra, não sei quanto custará ou estará a custar o equipamento que ali está ou será instalado e menos ainda qual o orçamento de funcionamento corrente que, efetivamente, o Batalha implicará ao Município. Mas sei que o primeiro draft sobre o projeto indicava a necessidade da contratação de oito recursos humanos em permanência, que depois passaram a ser 14, conforme os documentos relativos à empresa de cultura entregues ao Tribunal de Contas. Contudo, o que hoje temos em curso é a contratação de mais de 20 pessoas para trabalharem em exclusivo no Batalha, pagas fora e acima da tabela da função pública.

Ao contrário do que aconteceu em 2014, com a contratação do diretor artístico do Teatro Municipal, cujo vencimento Paulo Cunha e Silva fez questão de indexar ao de um vereador (o que também aconteceu no Coliseu do Porto), o diretor do Cinema Batalha, ganha, já hoje, bem acima do valor pago a um vereador ou a qualquer administrador de qualquer das empresas municipais, ou seja, é pago acima daquilo que recebe quem supostamente manda nele.

Também sabemos que, pese embora o Porto tenha uma marca mundialmente premiada, da qual derivaram por exemplo as imagens do Teatro Rivoli ou do Mercado do Bolhão, a Câmara já decidiu gastar, há quase dois anos, mais de 80 mil euros na criação de uma “imagem corporativa” para o Cinema Batalha, através de um procedimento que, em nenhum documento, faz sequer referência à necessidade de compatibilizar as duas imagens. Isto é, o Batalha, embora pago integralmente pelos munícipes do Porto, será uma coisa “à parte”.

Com sorte Rui Moreira inaugurará o Batalha, ainda presidente da Câmara, e com mais sorte alguns de nós lá irão ter o privilégio de lá ver um dia um filme de Akira Kurosawa. O que mais de 20 pessoas lá farão diariamente, aposto que nunca saberemos ao certo. Mas sabemos que, daqui a menos de 20 anos, o cinema onde terão sido investidos dezenas de milhar de euros, será entregue, impecável, aos seus proprietários privados, que terão então já recebido a totalidade dos três milhões de rendas.

Quanto aos recursos humanos contratados para gerir e colocar em funcionamento este “templo” da cultura, tornar-se-ão custos permanentes para o Município, haja ou não um filme de Akira Kurosawa para assistirmos.

Desejo toda a sorte do Mundo a este projeto, que na vigência de um contrato de 25 anos (já parcialmente cumprido), custará ao Município do Porto o valor equivalente à construção de vários Terminais Intermodais de Campanhã, a diversos Pavilhões Rosa Mota ou várias vezes mais do que custariam as obras do decadente Coliseu que, segundo a sua atual presidente, precisaria do investimento equivalente apenas às rendas pagas aos proprietários do Batalha.

Não tenho dúvidas de que o Cinema Batalha deve ser preservado. O que não creio é que o deva sê-lo a qualquer custo e só pelo Município que se queixa – e bem – de fracos recursos dados pelo Estado para tratar das escolas ou dos centros de saúde que o processo de descentralização lhe endossa. Dito de outra forma, a avaliação do custo/benefício deste projeto ou não está feita ou não parece ser explicável.

A cultura é um alimento fundamental para os cidadãos, que não secundarizo. Mas é, precisamente por ser um bem de primeira necessidade que devemos respeitá-lo e, se preciso for questioná-lo, com a mesma liberdade e desassombro com que Paulo Cunha e Silva ou Tiago Guedes falaram sobre diversos assuntos e temas. Mesmo sabendo que isso lhes poderia custar a perseguição de certas “elites” culturais e pseudoculturais da cidade, onde vingam cada vez mais os “yes-mans”.

Cá estarei para dar aos responsáveis por este projeto os mesmos elogios que agora deixo ao Tiago Guedes, na hora da sua saída. Mas, para tal, o Cinema Batalha terá de cumprir, como cumpriu o Rivoli, o desígnio transformador que o Teatro Municipal assumiu, com sucesso. E terá de se abrir à cidade, falar em português e porque não com sotaque, deixando de lado a bazófia e dedicando-se a servir quem paga a enorme conta que tudo isto irá custar.

Mas, pela amostra do que até aqui se passou, a única frase que me ocorre é: “vai no Batalha”.