(Pensamentos avulsos após a peça de teatro “As Grandes Comemorações Quase Oficiais do Período Histórico Habitualmente Conhecido como PREC (Processo Revolucionário em Curso)”, encenação de Gonçalo Amorim, Teatro Carlos Alberto, 6 de outubro de 2024)

Aprende-se muito com aqueles de quem se discorda.

Na apresentação da peça, o coletivo de autores prometia “problematizar e contrariar a ideia de que [o PREC] foi um período dominado pelo caos e por excessos ideológicos”. A “Comissão de Festas” (o tal coletivo) advertia: o espetáculo é “(…) intimamente parcial. De esquerda. Antirreacionário e antifascista. E, por isso mesmo, é celebratório, festivo e popular.” Quando li a sinopse, abri um espaço obrigatório na agenda para assistir ao exercício encomiástico do PREC em versão teatralizada. Sempre me interessei pelo período, sobre ele li bastante e considero-o paradigmático dos riscos da polarização política em curso.

Depois de quase três horas e meia de fragmentos que mergulhavam no PREC (“precformances”), uns dias depois ainda não percebi se assisti a uma peça de teatro ou a um comício. A peça é sobre a nostalgia do PREC, misturando voluntarismo, convicção ideológica e violência embrionária, com uma entrega plena à intervenção política. Não vale a pena voltar à vexato quaestio da fusão entre arte e política, ou de que como a arte é trespassada e instrumentalizada pela política. Já escrevi no passado e reforço a minha posição a cada peça em que a cumplicidade arte-política é visível: a arte expõe-se à decadência quando é instrumentalizada pela política.

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Aprendi com a peça que os que pactuam com o regime em vigor são burgueses, vendidos ao capitalismo (ou por ele hipnotizados) e metidos num largo baú onde medram como “fascistas”. Depois de ter sido informado que fascistas e liberais são da mesma cepa, concluí que se não nos mobilizarmos contra o grande capital que nos oprime somos coniventes com um fascismo disfarçado de democracia. E eles, os saudosistas do PREC, que usam a palavra “democracia” à exaustão para, quase no fim, defenderem a “ditadura do proletariado”, num ativismo arrancado ao fundo da alma, ensinaram como a democracia burguesa continua a condenar os explorados a serem explorados. Se pudessem mudar o curso da História, os saudosistas do PREC não teriam permitido eleições e teriam demitido (ou condenado a degredo, ou a cárcere) uma parcela considerável do povo. Justamente todo aquele povo que, em sucessivas eleições, foi condenando os partidos da extrema-esquerda à insignificância.

A peça incluiu tragédias que se sujeitaram ao efeito Photoshop previsível para quem se amordaça a um autismo intelectual. Os tribunais populares, porque a justiça que se aprende nas Faculdades de Direito é uma justiça enviesada, malsãmente burguesa, que se inclina sempre a favor dos poderosos. Ou a cena, contada com uma elevada intensidade dramática, do homem que enquanto rapaz celebrava o primeiro de maio de 1980 às cavalitas do seu pai, evocando as cabeças de carneiro empaladas como metáfora do consulado de Sá Carneiro. E como a personagem ajuizou o desfile de cabeças de carneiro decepadas como uma “encenação carnavalesca”. Poderia discordar e considerar a encenação macabra e emblemática de uma violência inaceitável, ou seria condenado ao açaime se me tivesse levantado em pleno ato para propor a correção do qualificativo? No momento de elevada intensidade dramática, o ator que sai da personagem de toupeira e encarna na pele de ator com um nome próprio desfila os nomes que serviram de inspiração para a “democracia” que o coletivo celebrou na peça. Não faltaram Baader e Meinhof. A páginas tantas, num momento de exaltação, avisou que não admite que digam que é de extrema-esquerda.

No fim da récita olhei em redor, com a ajuda das luzes acesas. Os aplausos foram demorados, num abraço arrebatado do público ao coletivo de atores (com a exceção de meia-dúzia de espectadores que saíram apressados e dispensando o obrigatório aplauso). Uma das atrizes gritou o pregão sacramental “fascismo nunca mais”, esquecendo-se que a peça passou grande parte do tempo a denunciar o “fascismo” em que vivemos. O exercício de nostalgia tinha tocado o público profundamente. Este público pratica onanismo intelectual: só adere às artes desde que estejam politicamente comprometidas com aquilo que esse público gosta. Este viés é significativo da sua linhagem democrática.

E se fosse possível um exercício contra-factual, só para perguntar o seguinte: se a extrema-esquerda tivesse vingado no PREC, em que regime político viveríamos? Como não faço parte do proletariado, a liberdade de escrever este texto seria garantida pelos tutores da “ditadura do proletariado”, como eles se intitularam, sem pejo, num momento da peça?

No intervalo da récita, em conversa com uma conhecida que estranhou a minha presença naquele momento celebratório de “esquerda”, disse-lhe, em tom provocatório: “ainda bem que ainda temos a liberdade de expressão”. Disse-o sem que ela pudesse deduzir que estava a insinuar o contrário. Repito: ainda bem que a liberdade de expressão está enraizada e, apesar de algum salazarismo entranhado até aos ossos, visível em vários quadrantes da sociedade (da direita à esquerda, por mais que a uns e a outros custe admitir), é uma pedra de toque do regime. Disse-o, admito, em tom de provocação e não fiquei propositadamente agarrado a um sussurro, para perceber se nas imediações estava um entusiasmado com o tempo-volta-para-trás do PREC que acusasse o toque. Ela confessou que gosta muito de “teatro comprometido”. Fiquei sem resposta quando lhe perguntei se teria elasticidade mental para assistir a uma peça que encenasse (por exemplo) um texto de Ezra Pound.

Depois de ter assistido a esta peça, puxei a fita atrás. Tivemos muita sorte durante o PREC. Podíamos ter escorregado para um banho de sangue se as coisas não tivessem corrido bem. Ou então foi apenas uma ópera bufa que, à distância, provoca uma gargalhada sonora. O coletivo de autores e de atores, afinal, fez-me um favor.

(O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico.)