Nos Estados Unidos, a eleição de Donald Trump fez renascer o interesse por obras filosóficas que pareciam adivinhar esse acontecimento, para muitos, incompreensível. Uma dessas obras foi Achieving our Country: leftist thought in twentieth-century America, publicada em 1998 pelo filósofo norte-americano Richard Rorty. Nela, Rorty contrapõe a New Left, nascida nos anos 70 na academia norte-americana sob influências pós-estruturalistas e pós-modernistas, à Old Left do período anterior. O que distingue a Nova Esquerda é o facto de fazer uma crítica radical ao sistema político e à sociedade tal qual existe: percecionando toda a realidade como resultado de um modelo político-económico inadmissível, recusa-se a participar num jogo que considera viciado. O argumento de Rorty é o de que, ao assumir uma postura de mera espectadora, esta esquerda se tornou responsável pela deterioração das condições de vida das classes mais baixas nos EUA, designadamente pela crescente desigualdade social que caracterizou as últimas décadas. O resultado seria uma grave crise social que conduziria ao surgimento de uma figura populista e autoritária.

Duas décadas mais tarde, e após a vitória de Trump, Mark Lilla tornou-se uma das figuras mais controversas do intelectualismo de esquerda ao apontar a responsabilidade daquela eleição à deriva identitária do Partido Democrata. Em De esquerda, agora e sempre (2017), Lilla defende que os democratas têm perdido a luta política e as sucessivas eleições por estarem radicalmente distantes dos seus eleitores. Mergulhados nas múltiplas questões pós-materialistas e identitárias, a New Left deixou o terreno livre para os republicanos, que continuaram a falar para os norte-americanos comuns.

Na verdade, os dois autores retomam uma crítica antiga e que parece consubstanciar um problema da esquerda intelectual – vanguardista e ativista. Ambos ecoam aquela que é, provavelmente, a mais famosa crítica da esquerda a partir do seu interior e que consta da segunda parte de O Caminho para Wigan Pier, de George Orwell (1937). O livro começa com uma descrição realista e perturbadora das condições de vida das classes pobres das cidades industriais de Inglaterra, mas a segunda parte contém uma crítica devastadora dirigida aos intelectuais socialistas:

«Veja-se qualquer socialista burguês. Veja-se o camarada X, membro do Partido Comunista da Grã-Bretanha e autor de O Marxismo explicado aos bebés. Acontece que o camarada X estudou em Eton. Estaria disposto a morrer nas barricadas, pelo menos em teoria, mas reparem que ainda deixa desabotoado o último botão do colete. Idealiza o proletariado mas é impressionante verificar até que ponto os seus modos são diferentes do proletário. (…) Conheci muitos socialistas burgueses, ouvi-os discursar durante horas contra a sua classe e, no entanto, nunca, mas nunca, encontrei um que tivesse adotado as maneiras dos proletários à mesa. E contudo, no fim de contas, o que os impede? Por que razão um homem que está convencido de que o proletariado reúne todas as virtudes se dá ao trabalho de comer a sopa sem fazer barulho com a boca? Só pode ser por, bem no íntimo, pensar que as maneiras dos proletários são repulsivas.»

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Oitenta anos volvidos, a leitura de Orwell carece de uma atualização de termos, polémicas e obsessões da esquerda – mas a espinha dorsal do argumento mantém-se: há uma vítima que é explorada por um opressor (antes uma exploração económica, hoje uma exploração estrutural e cheia de micro-agressões) e que precisa de salvação. Mas este discurso moralista assenta numa construção abstrata e idealizada da realidade – a vítima não tem, nem pode ter consistência real. E isto porque as pessoas reais não são, nem pensam como os intelectuais de esquerda gostariam. Na verdade, as pessoas reais têm uma linguagem, preocupações e ansiedades inaceitáveis. Riem-se de piadas inadmissíveis, temem irrazoavelmente o desconhecido e as ameaças do progresso, agarram-se às suas tradições e valores inaceitáveis. São geralmente deploráveis, racistas, xenófobas, ignorantes. E, ainda por cima, teimam em não entender o que os intelectuais lhes explicam, ousando, por exemplo, votar pela saída do Reino Unido da União Europeia. É por essa razão que um país que elegeu Barack Obama por duas vezes é, afinal, racista e que uma população que durante anos votou PT é, no fundo, fascista.

Os intelectuais de vanguarda acusam os eleitores – mas a verdade talvez seja mais simples: esta esquerda é incapaz de se relacionar com as pessoas comuns. No seu exercício de sobre-intelectualização, não usa a linguagem das pessoas comuns, não compreende as preocupações das pessoas comuns, não aceita as ansiedades das pessoas comuns e julga com superioridade moral todos os que vivem de forma diferente, em especial quando esse modo de viver é herança das tradições locais e rurais.

Em Portugal, onde tudo acontece mais tarde, só agora estamos a perceber este afastamento, agravado pela distância que vai de Lisboa ao país real e da bolha da representação aos valores democráticos. Este esquerdismo ativista, cada vez mais urbanizado e envolvido nas suas lutas progressistas, parece cada vez mais longe das preocupações comuns dos portugueses. Estes preocupam-se com insegurança, injustiça, corrupção, hospitais que não funcionam, má alocação dos seus impostos, o futuro dos seus filhos. Os radicais chics, para usar a expressão de Pacheco Pereira, estão concentrados em agendas avançadas, culpabilizações ocidentais, redescrição da história, julgamentos anacrónicos e censuras linguísticas. O resultado é o espaço abrir-se a novas direitas e, sobretudo, a figuras que não hesitam em ecoar aquilo que os portugueses comuns dizem – não julgando as suas opiniões, não criticando a sua linguagem, não pretendendo mudar os seus hábitos alimentares, nem ridicularizando os seus medos.

A verdade é que esquerda e direita são conceitos intelectualizados. A maioria da população não quer saber se as ideias são de esquerda ou de direita. A maioria das pessoas quer sentir que a sua voz é ouvida e que a sua vontade é representada – foi isso que a democracia lhes prometeu e é isso que esperam dela. O que é muito diferente de intelectuais ativistas pretenderem impor à comunidade o novo mundo melhorado que idealizaram nas suas cabeças.