Andava D. João II de Portugal esparecendo pelas ribeiras do Tejo, e disse a alguns ministros da Justiça que o acompanhavam a cavalo que corressem.
– Nós não sabemos correr senão atrás de ladrões.
Tornou El-Rei, gracejando:
– Pois correi uns atrás dos outros.
Padre Manuel Bernardes, Nova Floresta, 1706
Depois de confrontados com o primeiro tropeção do Governo (ao qual o Parlamento já está a pedir contas), perfeitamente evitável, desde logo se a coligação vencedora das eleições de 10 de Março se tivesse formalmente associado à Iniciativa Liberal, interessa ir ao principal, porque o tempo «é muito curto».
E o principal não é, nem podia ser, de modo algum, a “fase do bodo”: das reduções de impostos, dos aumentos dos salários (das mais variadas carreiras profissionais), dos aumentos das reformas ou da eliminação de taxas das portagens. Tudo isso é simples, mesmo quando tenha um “preço” ou pressuponha pacientes negociações. O principal, tanto para o Governo como para o país, tanto para os partidos que suportam o Governo como para os da oposição, são as reformas por fazer.
Durante os últimos trinta anos, apenas por duas vezes se verificou a presença de algum impulso reformista (entre 2005 e 2009 e entre 2011 e 2015). Nos restantes mais de 20 anos, a estagnação foi completa, como deram boa nota os três últimos governos do Partido Socialista, partido que, deliberadamente, não só afastou o “discurso das reformas”, como se absteve de inscrever qualquer reforma digna desse nome nos sucessivos Programas de Governo, com a agravante de ter retirado prontamente as que ainda havia no Programa Eleitoral de 2015.
Uma vez que em mais de 20 anos muito ficou assim por fazer, e outro tanto por consertar, havendo já algum consenso sobre algumas zonas carecidas de necessária intervenção (como sucede com a justiça e a corrupção), conhecendo os atavismos do país e os efeitos derivados da cartelização do sistema de partidos, a questão que me interessa analisar é a de saber que método deve ser aplicado para o efeito.
1 UMA PRIMEIRA SUGESTÃO
Com idêntica preocupação, por ocasião da tomada de posse do XXIV Governo Constitucional, o Presidente da República, no seu (aliás, excelente) discurso, depois sublinhar que, em matéria de reformas estruturais, as exigências de diálogo têm de ser ainda «de mais largo fôlego» e que «há sempre soluções em democracia» (Francisco Salgado Zenha), achou por bem acrescentar o seguinte:
“Um clássico, Frei Manuel Bernardes, escrevia, no final do século XVII, uma obra intitulada de Pão Partido em Pequeninos. Aplicável a esta situação, significa: parte-se o problema em vários mais pequenos e resolve-se um a um, sem perder a vista do todo; com paciência, sem elevar expectativas ou criar ambições ilusórias. Pode não ser espectacular, neste tempo de grandes emoções, paixões, seduções pela sensação imediata; mas poderá ser um caminho com virtualidades; os Portugueses só ganham se, com este ou outro caminho, o Senhor Primeiro-Ministro puder corresponder ao voto que deram à coligação que liderou e até a muito outro que lhe não deram, desde que entendam ambos que tenham sucesso, porque esse sucesso a todos aproveitará.”
Ou seja, sabendo da dificuldade da tarefa do Governo, tanto nas medidas urgentes como nas matérias de fundo, de orçamento ou de regime, o Presidente da República entendeu sugerir o método que o título da obra do Padre Manuel Bernardes podia inspirar (obra cuja primeira edição data de 1695, bastas vezes editada e reeditada nos séculos seguintes, salvo no século XXI). A sugestão ficou feita, e não deixou de ser captada, também como impressão, designadamente pela comunicação social.
Todavia, ressalvada a intenção, a ideia pode suscitar algumas dúvidas.
Por um lado, porque sendo o título do livro (segundo o exemplar de que disponho, em obra organizada e prefaciada por Augusto César Pires de Lima, segundo a edição de 1698, na 3.ª edição, revista e aumentada por Bertino Daciano, Porto, Editorial Domingos Barreira, 1961) Pão Partido em Pequeninos – Para os pequeninos da Caza de Deos: Breve tratado espiritual em que se instrui um fiel nos pontos principaes da fee, & bons costumes), os «pequeninos» a que se refere o nosso notável escritor e místico eram as “pessoas rudes” – que não tem copia de livros (pág. 127); ou seja, do título do livro nem parece que o termo “pequeninos” seja aplicável à divisão de uma unidade (seja ela qual for), nem parece que tão-pouco o seja a obra, por ela versar afinal sobre instruções espirituais, e não sobre matéria de outra espécie.
Por outro lado, se o título é esse, o conteúdo da obra (que corresponde à primeira parte do tomo II dos Tratados do nosso grande oratoriano, cuja faceta satírica não é menos célebre) versa essencialmente sobre um conjunto de instruções dadas (em modo de diálogo) por um religioso a um secular sobre a fé e sobre as boas obras (págs. 21-108), seguido de uma espécie de anexo (tradução do Castelhano da visão do Inferno de uma carmelita descalça do século XVI) e rematado com um conjunto de meditações (págs. 127-167) sobre os “Novíssimos” do homem (Morte, Juízo, Inferno e Paraíso).
Tudo nos impele por conseguinte a prosseguir na procura de um caminho alternativo.
2 UM OUTRO CAMINHO
E um caminho alternativo, embora com notórios pontos de contacto, foi-nos oferecido por Vasco Pulido Valente, em Maio de 2018 (na página 22 do número 3, Especial Aniversário, deste jornal).
Depois de referir, a propósito da competitividade, que fazer congressos de tecnologia, como a Web Summit, é uma fraude, porque os grandes problemas em Portugal, como toda a gente sabe, não são tecnológicos – são a burocracia e a justiça (cujas expressões então concretiza), declarou ele então a Miguel Pinheiro:
“Finalmente, há a conversa sobre a reforma do Estado. Estamos perante outra vigarice. Deviam ser feitas dezenas, centenas de pequenas reformas, a um ritmo acelerado – e não são feitas. Não são feitas porque isso ia perturbar as hierarquias do funcionalismo da administração central e da administração local.
O poder político não quer um confronto com a administração do Estado porque há um risco muito grande nisso, que é o seguinte: abrir uma guerra com o funcionalismo e com as hierarquias e depois não ter resultados. As reformas têm de ser muito bem feitas para os resultados serem visíveis. E rápidos. […].
Agora, essas pequenas reformas nunca vão ser feitas de uma só vez. A política é como a vida: funciona aos sacões. É intempestiva e imprevisível. Não se pode planear a vida: “eu agora vou fazer isto, depois vou fazer aquilo”. Os planos saem sempre trocados; qualquer pessoa que tenha mais de 40 anos sabe disso. A política não é diferente. É sempre um conflito, é uma guerra de atrito. A política é a guerra de 1914-1918.
Neste momento, nós estamos completamente empatados e, portanto, estamos imóveis.”
Eis o que parece ser um caminho alternativo mais recomendável: tanto para um Governo minoritário, como para cada um dos partidos que, dele não fazendo parte, integram o Parlamento. Um e os outros, limitados no exercício de alcançar maiorias de apoio: (i) podem já começar a estudar o modo como fazer essas pequenas reformas “bem feitas”; (ii) podem, nesse mesmo processo, começar por coligir igualmente as muitas propostas que lhes foram dirigidas aos longo destas décadas (e às quais não quiseram dar ouvidos); (iii) podem ir aprendendo, quanto a outras pequenas reformas (e a tudo o mais), com os sistemas políticos que há muito procedem desse modo; (iv) e, já agora, em vez de se concentrarem, como têm feito, nas exigências requeridas ao (sobrecarregado) Estado Social, podem igualmente compenetrar-se de que, antes dessas exigências, deviam estar as do Estado de Direito e as da Democracia, por ser isso que lhes dita a Constituição, mas também o que lhes ditam os sinais da degradação do regime político.