O problema e a causa

Neste momento existirá um défice de 454 médicos de família, o que se traduz nos cerca de 900 mil utentes sem médico de mamília conforme foi reconhecido esta quarta feira, no Parlamento, pela Ministra da Saúde.

E a primeira má notícia é que o número de internos que se irão formar nos próximos três anos não supera o grande número (1333) de médicos de família que se vão aposentar nestes três anos.

A segunda má notícia, é que para além das saídas previstas por aposentação, existirão saídas por outros motivos: por doença, por saída para o setor privado ou para o estrangeiro (no preciso momento em que escrevo estas linhas, entrou-me no mail uma oferta de uma empresa de recrutamento médico para um lugar em França, remunerado com 10 mil euros mensais) e por abandono da profissão.

A terceira e terrível má notícia, e que é culpa do Governo e na pouca atenção que dá aos Cuidados de Saúde Primários, está naquilo que me escreveu uma recém-especialista:

Confesso que estou numa fase de fazer algumas decisões importantes e a minha ideia inicial sempre foi permanecer no SNS, ideia que, infelizmente, se tem desvanecido talvez por uma série de fatores, que incluem a falta de reconhecimento pelo trabalho que desenvolvemos, a desarticulação entre equipas, a divergência de formas e métodos de trabalho e a remuneração desajustada em relação à responsabilidade que o nosso trabalho exige. 

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Na mesma semana em que fiz exame de especialidade, fui igualmente convidada por três privados diferentes para iniciar consulta, com projetos ambiciosos, bem liderados, com equipas com um objetivo comum e com uma sedutora remuneração.”

E, na sequência, esta recém-especialista, apesar de estar no lugar cimeiro do concurso de Outubro passado, podendo escolher o lugar que quisesse, optou por ficar fora do SNS. Foi um dos 122 (30% do total de médicos de família em concurso) que optaram por ficar de fora do SNS no concurso. 238 mil utentes continuarão, assim, sem médico de família.

A manter-se esta tendência (que é reforçada pelo facto de a maioria dos internos estar no Norte, com as suas vidas já organizadas, quando a maioria das vagas se encontra na Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo – ARSLVT) é previsível que nos próximos três anos passemos dos atuais 900 mil utentes sem médico para 1,8 milhões (o dobro), o que será uma realidade tremenda.

Na ARSLVT passaremos de 620 mil sem médico de família para cerca de 900 mil.

Ao contrário da promessa e compromisso deste Governo, de chegar ao fim desta legislatura sem utentes sem médico de família, a verdade é que o Governo vai conseguir chegar ao fim da legislatura duplicando o número de portugueses sem médico de família.

E, estando numa segunda legislatura, não pode o Governo alegar, que quando assumiu aquele compromisso desconhecia os números de entradas e saídas de médicos previstas.

O que aconteceu então?

O Governo cometeu o erro de suspender o acesso das Unidades de Saúde Familiar ao Modelo B (USFs B), modelo em que os médicos, enfermeiros e secretários clínicos têm autonomia organizativa e uma remuneração diferenciada em função do cumprimento de indicadores contratualizados. Uma remuneração excelente, que lhes permite ganhar o dobro em relação aos colegas que estão no modelo tradicional com o vencimento da tabela salarial do acordo coletivo de trabalho.

Modelo B, que não só permitiu o aparecimento do Modelo USF, com uma grande adesão dos profissionais a este modelo, como promoveu um enorme salto na qualidade dos Cuidados de Saúde Primários.

Modelo B, que foi um tremendo chamariz para a escolha do Internato de Medicina Geral e Familiar e para a adesão ao Modelo USF. Só que, logo quase no início da Reforma de 2006, se “inventou”, que para se chegar ao Modelo B, era preciso estagiar primeiro no Modelo A. Modelo A, que tem a autonomia e a exigência do Modelo B, mas o vencimento da carreira. E o acesso ao Modelo B só era possível após uma avaliação que certificasse que a USF cumpria todos critérios de uma grelha de avaliação extremamente exigente.

Foi o chamariz do Modelo B que não só atraiu os médicos para a carreira de Medicina Geral e Familiar, como permitiu o entusiasmo da reforma e adesão massiva dos profissionais a este modelo: dois terços dos médicos de família estão em Modelo USF.

Mas apenas um terço dos médicos de família está em Modelo B (a maioria provém das candidaturas iniciais). O outro terço está a sentir-se enganado e frustrado. Sente que está a pedalar atrás de uma cenoura a que, percebe agora, nunca vai chegar – por um lado, as avaliações extremamente exigentes intuídas, como orientadas propositadamente pela Administração, para impedir o acesso ao Modelo B; por outro, um sistema de quotas de acesso ao modelo extremamente restritivo, que faz com que uma série de USFs A, que superaram todas as exigências e mais alguma para serem certificadas, continuem em Modelo A. E houve anos em que não houve entradas no Modelo B. 2020 foi um deles!

No fim de 2019, a Ministra da Saúde prometeu que daí em diante, todas as USFs de Modelo A com parecer técnico positivo passariam a Modelo B no ano seguinte.  Mas, e aqui um grande “mas”, que primeiro teria de ocorrer uma revisão do sistema remuneratório do Modelo B, a realizar em 2020. Acontece, que em 2020 nada aconteceu e nenhuma proposta de revisão foi apresentada. O que, aliás, é reconhecido no recente despacho conjunto do Ministério da Saúde e do Ministério das Finanças, em que se determina o número de USFs a constituir em 2021 e o número de Modelos A que passam a B:

“Nessa medida, o Despacho n.º 2533/2020, de 14 de fevereiro, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 38, de 24 de fevereiro de 2020, determinou o número de USF de modelo A a constituir no ano de 2020, assim como estabeleceu que o número de USF a transitar, também em 2020, do modelo A para o modelo B fosse estabelecido por despacho conjunto dos referidos membros do Governo, após a aprovação do novo modelo de pagamento pelo desempenho para as USF de modelo B, a apresentar pela Estrutura de Missão para a Sustentabilidade do Programa Orçamental da Saúde e a negociar nos termos da lei.

Contudo, em março de 2020, a declaração da Covid-19 como emergência de saúde pública internacional e a situação epidemiológica que se abateu sobre o país e que se mantém, não permitiu concretizar a negociação necessária à aprovação do referido modelo de pagamento, sendo esta uma matéria que impõe condições que se não consideram reunidas neste momento.

1 – O número de unidades de saúde familiar (USF) de modelo A a constituir no ano de 2021 é de 20.

3- Até 31 de dezembro de 2021, transitam do modelo A para o modelo B até 20 USF.”

Número muito aquém das USFs com parecer técnico aprovado e, mesmo assim, aquelas 20 só passarão a Modelo B no final do ano e se houver cabimento orçamental.

Importa dizer, que ao contrário do que o ministério afirma, a pandemia em nada impediu ao ministério de fazer, apresentar e negociar uma proposta de revisão do Modelo Remuneratório do Modelo B. A qual, aliás, nem seria necessária se a Administração interpretasse corretamente a lei e a fizesse aplicar. É assunto que se resolve com trabalho de casa, troca de documentos por mail e, se necessário, reuniões por via digital.

Eu próprio, um dos pré-pioneiros do Modelo – que fui a única pessoa a dizer que a Administração não estava a fazer cumprir a lei, permitindo que a autonomia das USFs escorregasse da bandeira “USFs centradas nos utentes” para uma realidade de “USFs centradas nos interesses dos profissionais” e que aquela estava a pagar 50 milhões de euros dos contribuintes, por ano, sem a devida contrapartida, em horas que não constavam nos horários aprovados e não eram feitas – deixei  aqui uma proposta de correção do Modelo B  de forma a que ele fosse aplicado na maneira como tinha sido pensado e justificado.

A verdade, é que no fim de 2019, a Ministra da Saúde “despediu” por inteiro a equipa nomeada pelo seu antecessor, que no ministério superintendia a reforma dos Cuidados de Saúde Primários (Coordenação da Reforma do SNS – Cuidados de Saúde Primários) e chamou a si diretamente esta área, desconhecendo-se quem agora lhe dá o apoio.

Acresce que o Programa de Governo do PS fala em generalização do Modelo USF, mas não fala em Modelo B. O que faz pressupor que, para o Governo, o Modelo B é mesmo para descontinuar.

O grave disto é que os recém-especialistas fizeram o seu internato em USFs do modelo B, com boas instalações e bem organizadas, bem remunerados, onde não se atendem utentes sem médico,  apenas os inscritos nas listas dos médicos da USF; quando as vagas que se lhes oferecem são para lugares em Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSPs- Centros de Saúde do modelo antigo, anterior às USFs) com instalações degradadas (o Governo apostou em dar primazia em instalações novas ou renovadas às USFs e deixou para trás as UCSPs), mal organizadas, com listas grandes e, para além delas, a obrigação de atender os doentes sem médico.

Percebendo que o Modelo B é uma miragem inatingível e a realidade que se lhes oferece é muito negra, não espanta que os médicos deixem os concursos desertos, com o resultado acima descrito –  em vez dos utentes sem médico acabarem, bem pelo contrário, duplicam.

E isto, como acima se demonstra, devido às erradas decisões e orientações políticas deste Governo.

Como resolver o problema dos sem médico de família?

Este problema pode ser resolvido com a conjugação de três políticas, visando:

  • Mais médicos na rede do SNS;
  • Mais utentes por médico;
  • Menos utentes na rede do SNS

E estas políticas só são viáveis se forem executadas com o apoio voluntário dos intervenientes.

Mais médicos no SNS ou a trabalharem para o SNS

  • É necessário criar condições para que o ingresso no SNS se torne atraente. Quer voltando a abrir o Modelo B, tornando o seu acesso uma realidade e não uma miragem, quer retomando o acordo feito por Leonor Beleza com os médicos, disponibilizando o regime das 42 horas com exclusividade (e respetivo subsídio), que foi a base estruturante da rede médica de Cuidados de Saúde Primários e que foi abolido em 2009 por um Governo do PS;
  • Criando condições para que os médicos fora do SNS, ou porque o não quiseram integrar ou porque se aposentaram, possam trabalhar para o SNS. O Modelo C, em que, tal com acontece por exemplo no NHS inglês, as unidades são dos profissionais em regime de contratualização com o SNS, num regime muito parecido com o modelo B (mais um x para os gastos com as instalações), seria a forma ideal. Até porque já está legislado. Falta apenas ser regulamentado.

Mais utentes por médico

  • Criando incentivos para, em todos os modelos, os médicos voluntariamente aumentarem as suas listas.

Menos utentes na rede do SNS

  • Criando condições para que, quem tenha médico de família no sistema privado possa prescindir do médico de família na rede pública.

Como?

Antes de mais, os lares deverão passar a ser encarados também como instituições de saúde e dotados de uma direção clínica, com responsabilidade e autoridade, que se responsabilize pelo seguimento, financiado pelo SNS, dos utentes, que assim poderão prescindir da inscrição naquele que era o seu médico de família, mas a que na realidade já não têm como recorrer.

Mas, sobretudo, possibilitando que os médicos de família privados possam, sem quaisquer encargos para o SNS, articular-se com este. Designadamente, que possam prescrever exames complementares de diagnóstico (análises, exames de imagem, de cardiologia…) e tratamentos de fisioterapia comparticipados pelo SNS. Tal como fazem os seus colegas no SNS e já acontece há muitos anos com a prescrição dos medicamentos (medida, aliás, de um governo do PSD e por mim na altura pedida ao ministro Paulo Mendo, que me disse que não seria possível, mas que a implementou um ano depois. Hoje seria impensável que assim não fosse) – sobretudo, numa primeira fase, aos utentes que voluntariamente optem por, às suas custas, ter um médico de família privado em detrimento de um médico de família no SNS.

Deverá ainda ser possível a estes médicos de família privados referenciarem para as instituições do SNS e passarem Certificados de Incapacidade para a Segurança Social (baixas) a estes utentes que tenham feito este opting out específico. Ou seja, permitir que quem opte voluntariamente por um médico de família no sistema privado não perca nenhum dos seus outros direitos.

De facto, muitas pessoas têm o seu médico de família no sistema privado, muitos com apoio de Seguros de Saúde ou subsistemas como a ADSE, mas têm que se manter como utentes de um médico de família do SNS para poderem ter acesso a meios complementares de diagnóstico e terapêutica (MCDTs) pagos pelo SNS e a baixas para a Segurança Social. Assim, enquanto uns têm médico de família em duplicado, outros não conseguem ter nenhum.

Numa semana em que se comemorou o médico de família e em que se descobriu a carência que existe no SNS, sobretudo na região de Lisboa, estas medidas permitiriam descobrir que afinal existem médicos de família suficientes.

Porque, e isto é o mais importante, ser médico, e sobretudo ser Médico de Família, é independente do contexto em que o médico se insere. Só a cegueira ideológica do estatismo reinante o não permite ver.