Na última cimeira ibérica realizada em Vila Real, nos dias 29 e 30 de Maio, o tema em agenda foi a cooperação transfronteiriça luso-espanhola e a centralidade do mercado interior peninsular nesse contexto. Agora que se fala tanto em valorização do nosso interior este assunto tem uma relevância irrecusável. Nesse âmbito teve lugar um seminário internacional em que participei. Deixo aqui algumas reflexões, que fiz na ocasião, a propósito do próximo período de programação 2020-2026.

Introdução

Na agenda política europeia e nacional pode parecer paradoxal, na actual conjuntura, falar de Europa das Regiões e de uma nova doutrina regionalista para a União Europeia. De facto, a opinião publicada de referência é dominada pela geopolítica dos grandes países, a macroeconomia da zona euro e o lobbying das grandes corporações do mercado único europeu. A mesopolítica e a mesoeconomia das Eurorregiões, das áreas metropolitanas, das redes de cidades e, de uma maneira geral, dos agrupamentos europeus de cooperação territorial (AECT) são observadas com alguma sobranceria a partir das capitais e consideradas como variáveis endógenas da política macroeconómica e financeira decidida em Bruxelas, Frankfurt e nas capitais. Acresce que, no quadro das políticas de ajustamento ainda em vigor, as políticas regionais e de coesão acabam por funcionar como instrumentos de gestão da procura agregada e, portanto, sujeitas ao “stop-go” dessas políticas e à sua “descontinuação” na transição entre quadros comunitários de apoio e períodos de programação plurianual.

E, no entanto.

Entre a macrorregião europeia da península ibérica (55 milhões de habitantes) e, por exemplo, a Eurocidade do Baixo Guadiana (55 mil habitantes) há uma grande multi-escalaridade e muito espaço para mais crescimento bem distribuído e margem de progresso apreciável para mais bem-estar e desenvolvimento, onde se inclui, obviamente, a cooperação transfronteiriça e o grande mercado interior peninsular. Neste contexto, vejamos, muito brevemente, o que pode ser antecipado para o próximo período de programação plurianual 2020-2026, porque é aqui que tudo, ou quase tudo, se decidirá. E importa começar desde já.

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I. A contingência europeia do futuro próximo

Eis alguns factores críticos que estarão presentes no xadrez europeu do próximo futuro, só não sabemos em que dose e qual o seu grau de verosimilhança:

  • Uma geopolítica europeia muito sensível no plano internacional – Rússia/Ucrânia, Grande Médio Oriente, Margem Sul do Mediterrâneo, Turquia/Chipre, Terrorismo Internacional – para citar os dossiers mais problemáticos e que, a todo o momento, podem consumir recursos avultados do orçamento comunitário,
  • Uma negociação Brexit muito problemática e demorada e com impacto sensível na estrutura e volume dos recursos orçamentais,
  • A expectativa de um crescimento da economia europeia no seu conjunto acima dos 2% em termos reais e dos 4% em termos nominais, é uma variável que ninguém pode confirmar,
  • Um entendimento franco-alemão favorável ao relançamento do projecto europeu é uma possibilidade em aberto, mas todas as dúvidas permanecem no que diz respeito, por exemplo, ao aumento dos recursos próprios orçamentais,
  • Um orçamento plurianual 2020-2026 que, em termos nominais, não seja inferior ao actual orçamento de programação plurianual é, só por si, uma proeza considerável que, todavia, a política europeia não está em condições de confirmar.

Nenhum dos factores acima referido está assegurado. Em consequência, podemos ter uma contingência europeia mais ou menos benigna, mas sempre com impacto relevante sobre a próxima negociação do envelope orçamental para o período 2020-2026.

II. A grande incógnita em matéria de política de coesão territorial

Face à contingência europeia referida anteriormente, a equação orçamental do próximo período de programação pode ser colocada, resumidamente, nestes termos:

– 2020-2026 será um período de “ajustamento virtuoso” para um patamar orçamental inferior ao actual, devido à pesada restrição financeira que pesa sobre a União Europeia depois da saída do Reino Unido, isto é, um período de downgrading orçamental;

– 2020-2026 será um período de “transição para uma nova doutrina em matéria financeira”, mais federal e com maior perequação orçamental, isto é, um período de upgrading orçamental;

– 2020-2026 será um período de “acomodação orçamental” que merece o consenso dos Estados-membros que decidem manter o actual fluxo de recursos, isto é, um período de statu quo orçamental, em muito condicionado pelas incidências da negociação do Brexit.

III. Os planos de intervenção para a cooperação transfronteiriça e o mercado interno peninsular

Assim sendo, a intervenção em matéria de cooperação transfronteiriça e mercado interno peninsular pode ser colocada em dois planos analíticos, qualquer deles com uma governança multi-níveis que importará acautelar:

1. Em face de uma contingência europeia mais favorável

  • A macropolítica da região europeia da península ibérica: podem ser equacionados os grandes investimentos relacionados com as redes transeuropeias no quadro ibérico; trata-se de um trunfo da maior importância para os dois países peninsulares e para a estruturação do mercado interno peninsular;
  • A mesopolítica da relação bilateral: as cimeiras ibéricas e os programas de acção aí definidos marcarão o ritmo da cooperação transfronteiriça; faltará definir, apenas, um modelo de governança mais proactivo para o mercado interno peninsular;
  • A micropolítica das Eurocidades e da cooperação de proximidade: os actores locais e regionais constituem as suas carteiras de projectos aos programas em vigor em estreita colaboração.

2. Em face de uma contingência europeia menos favorável

  • A macropolítica da região da península ibérica: os grandes projetos são adiados ou fazem-se escolhas simbólicas em função dos recursos disponíveis,
  • A mesopolítica bilateral: as cimeiras tornam-se um ritual inconsequente e ficam completamente dependente da gestão macroeconómica,
  • A micropolítica local: a cooperação torna-se minimalista, conservadora e localista.

IV. Uma nova doutrina para a política de coesão 2020-2026

Independentemente da contingência europeia e dos rigores da gestão macroeconómica há sinais de que uma nova “doutrina regionalista” pode estar já em marcha. Eis alguns elementos para reflexão entre 2017 e 2020 (ver, também, alguns pontos do programa eleitoral de Emmanuel Macron):

  • O mercado único digital e suas implicações sobre a política de coesão territorial,
  • A harmonização social, fiscal e ambiental e suas implicações na política de coesão,
  • A harmonização das ajudas de Estado e suas implicações na coesão territorial,
  • O orçamento para a zona euro e o seu mecanismo de perequação regional,
  • A nova engenharia da cooperação transfronteiriça em face destas alterações,
  • A criação de um direito comunitário especifico para a cooperação transfronteiriça,
  • O papel das plataformas tecnológicas regionais na oferta conjunta de utilities transfronteiriças (a nova geração de infra-estruturas para o mercado único digital).

Em face de uma nova arquitectura da União Económica e Monetária, em especial de um orçamento para a zona euro, todos estes pontos devem estar presentes sobre a mesa das negociações. O entendimento entre os dois países ibéricos é crucial para poder funcionar como capital de negociação.

V. Notas Finais

Duas notas finais para memória futura e para servir de aviso à navegação dos dois povos peninsulares. Em primeiro lugar, seja qual for a contingência europeia, mais ou menos favorável, o próximo período de programação só será favorável aos nossos interesses se a “macrorregião da península ibérica” se apresentar como tal no xadrez europeu. É uma espécie de jogada de antecipação face às grandes mudanças que se adivinham e avizinham. Em segundo lugar, fica aqui uma menção aos “cisnes negros” da relação peninsular, esperando nós que este alerta possa ser um bom augúrio para impedir outros tantos conflitos entre vizinhos:

  • As consequências de um dossier Almaraz mal resolvido,
  • Os transvases de água entre bacias hidrográficas (o respeito da convenção de Albufeira),
  • A jurisdição de águas territoriais “comuns” e os recursos que lá se encontram,
  • Os impactos do Brexit, por discriminações de favor em benefício de Portugal (a colocação da sede de empresas britânicas em Portugal),
  • O efeito de ricochete dos regionalismos políticos nas relações diplomáticas e consulares (mal-entendidos e equívocos),
  • Uma nova vaga de refugiados e a gestão de fronteiras comuns (o Magrebe ocidental),
  • As alterações climáticas e a gestão das secas severas e dos incêndios que daí decorrem, num contexto de falta de água e de transvases entre bacias,
  • A mudança de comandos territoriais NATO para o centro da península ibérica em prejuízo de Portugal.

Por todas estas razões, o período entre 2017 e 2020 é crucial para preparar um entendimento muito compreensivo entre os dois países ibéricos, sob pena de um qualquer cisne negro, peninsular, europeu ou internacional, deitar tudo a perder. E não faltarão ensejos para tanto.

Universidade do Algarve