Quando em Março de 2020 foi decretado o confinamento decidi assinar a Foreign Affairs que até então comprava esporadicamente. Foi na edição de Julho/Agosto desse ano que me deparei com um texto, extremamente interessante porque extremamente dissimulado, assinado por Sebastian Mallaby, jornalista inglês com diversas contribuições em vários jornais e revistas, e com o título ‘The Age of Magic Money’. Estávamos em plena pandemia com a economia parada mas com as fontes de produção e os meios de distribuição a funcionar. Foi nesse cenário que Mallaby veio dizer que, com o risco da inflação completamente afastado, os bancos centrais só tinham de tornar o dinheiro cada vez mais barato para que as economias continuassem a crescer, os países a desenvolverem-se e as nossas vidas a melhorarem. Os governos podiam gastar sem ligar à dívida nem à produtividade e os bancos centrais comprar dívida pública porque a globalização continha qualquer pressão inflacionista. Era ouro sobre azul, o tempo do dinheiro mágico, a época em que as vacas voavam.
Verdade seja dita que governos e banco centrais, comentadores e opinião pública concordaram com Mallaby. Os governos gastaram ainda mais do que antes, os bancos centrais deram ainda mais garantias aos governos, os comentadores teceram ainda mais elogios aos governos e aos bancos centrais e a opinião pública agradeceu comovida aos bancos centrais, aos governos e aos comentadores. Naturalmente que existiram excepções. Nem todos se vergaram ao que parecia evidente. Alguns resistiram, não foram na onda e puseram o dedo na ferida. Foi o caso de Raphaëlle Chappe e Mark Blyth que, na edição de Novembro/Dezembro desse mesmo ano e nessa mesma revista, escreveram uma resposta a Mallaby. Com as taxas de juro a zero e compras maciças de dívida pública, os bancos centrais não podiam fazer muito mais em caso de crise económica. Da mesma maneira os governos estavam condicionados com dívidas públicas elevadas e a fórmula de descer os impostos sem cortar na despesa podia ter efeitos perversos, como se viu com o malogrado governo de Liz Truss. Acrescente-se a elevada despesa dos Estados que não era acompanhada por um aumento na produtividade, o que pressionava a inflação. Tudo somado eram muitos os motivos para não se ser tão optimista quanto Sebastian Mallaby.
O que sucedeu depois é do conhecimento de todos: a pandemia acabou e Putin invadiu a Ucrânia. Ou seja, a procura disparou e a oferta de certos bens essenciais tornou-se escassa. Foi o suficiente para que a inflação, já à espreita, pusesse a cabeça de fora. Até 2021 os preços não subiam porque a globalização, a deslocalização das empresas para países de mão-de-obra barata, a melhoria dos meios de comunicação e de transporte compensavam o dinheiro que os bancos centrais despejavam na economia e a elevada despesa pública a que os governos se socorriam para se manterem. Nessa altura havia espaço para isso. Ora, foi esse espaço que se reduziu com a desconfiança quanto à manutenção de linhas de produção, montagem e de distribuição em países como a China. Foi essa desconfiança, a que se juntou o aumento da procura e uma guerra na Europa, que expôs o expansionismo monetário dos bancos centrais e o despesismo dos governos.
O passo seguinte foi óbvio com a FED e o BCE a subirem as taxas de juro. Aquilo que ainda não se viu foi a adequação de certos governos a essa mudança. Vejamos o exemplo de Portugal onde tanto o Presidente da República como o Primeiro-Ministro criticam o BCE por excesso de zelo e falta de empatia dos seus governadores. Claro que as afirmações de Marcelo e Costa são oportunistas, vazias de sentido e valem zero embora causem mossa na percepção pública. Mas há pior: o plano do governo para a recuperação económica passa pela aplicação dos fundos do PRR na modernização do Estado. Cerca de 85% dos mais de 800 milhões de euros distribuídos ao abrigo do PRR está concentrado no sector público e nas escolas. Se estes investimentos não tiverem correspondência directa no aumento da produtividade, o mais certo é contribuirem para mais inflação. Esta já atingiu os 10% e a verdade é que o governo não tem qualquer plano para a combater.