Por volta de 1990 um homem de negócios japonês adquiriu um quadro original de Van Gogh por cerca de noventa milhões de dólares. Na altura, o valor imobiliário (metro quadrado) em Tóquio estava altíssimo, e foi uma altura em que se pagaram montantes recorde por diversas obras pintadas a óleo que se destinavam a decorar escritórios e salas de reunião de diversas empresas, muitas vezes pagando bem acima do preço pedido ou preço de licitação, como foi precisamente o caso deste quadro de Van Gogh, o “Retrato do Dr. Gatchet”. É de facto uma obra emblemática de Van Gogh, retrata o seu médico com um ar pensativo. Um aspeto muito interessante também sobre a arte e vida de Van Gogh é que durante a sua vida o pintor vendeu pouco, diz-se que vendeu um único quadro, através de seu irmão Theo, que retrata uma vindima. Voltando à década de noventa, e pouco tempo após a histórica compra deste homem de negócios japonês, o Japão entrou numa crise económica e financeira prolongada que durou cerca de uma década.
Todos conhecemos a imagem ou o som (ou até as duas coisas combinadas) de uma lata ou garrafa vazia a ser chutada rua abaixo por uma criança. É uma espécie de bola de futebol improvisada, imprevisível e barulhenta, que poucas crianças resistem a chutar. Vai se chutando e ela vai andando e rebolando até a criança parar de a chutar de repente, muitas vezes por um motivo qualquer banal, como a lata ter batido numa parede ou caído num buraco inesperado ou até simplesmente porque alguém mandou a criança parar.
A última situação mencionada no título deste texto refere-se aos antibióticos que deixam de funcionar. Todos nos já fomos de uma maneira ou outra alertados para este fenómeno. Determinadas infeções exigem antibióticos em doses e tomas recomendadas por especialistas, mas o uso excessivo de antibióticos pode causar resistência dos males que pretende curar, podendo isto criar a necessidade de ser usada mais dosagem, mais concentração ou mais tomas. Um dia, o desfecho pode ser a anulação do próprio efeito, sendo já contraproducente a administração do dito antibiótico que, independentemente da quantidade, já não consegue atuar sobre a infeção ou agente infecioso em causa.
A grande depressão económica dos Estados Unidos da América de 1929 não foi a primeira crise económica ou financeira. É sabido que sempre existiram crises, recessões e depressões, sempre existiram também fenómenos como bolhas, desde a bolha das tulipas na Holanda ao “ponzi” de Madoff nos EUA. O que caracteriza muitas crises e bolhas são essencialmente sentimentos de muito otimismo e ganância com ventos favoráveis, como políticas monetárias excessivamente expansivas ou como muito incentivo ao crédito ou elevado endividamento com a promessa de ganhos contínuos e prolongados no futuro. A crise de 1929 destaca se pela sua dureza e pelos impactos sociais alargados que teve na sociedade americana e não só.
Essencialmente uma crise económica ou financeira caracteriza-se como um evento ou fase em que não há dinheiro suficiente para sustentar uma economia, sistema ou sociedade que até ao momento anterior à crise se mantinha ativa, com um fluxo de dinheiro suficiente para saldar créditos, dívida e mesmo assim poder extrair lucros e continuar a crescer. Uma crise pode resultar numa recessão e uma recessão pode resultar numa depressão. A crise de 1929 foi um pouco assim, faltou dinheiro para alimentar toda uma máquina económica e financeira. Desde essa crise houve várias outras crises, algumas até à década de sessenta e, depois da década de setenta, crises ainda com mais frequência, como a crise das bolsas de 1987, a crise do Japão no início de 1990 ou a crise dos “dotcom” de 2000.
No entanto a outra grande crise sistémica que abalou o mundo foi a grande crise económica e financeira de 2008, que começou com a sobreavaliação do imobiliário nos Estados Unidos, se agravou com o desmoronar das complexas camadas de “securitization” e que acabou por ter impactos mundiais que tanto se sentiram, por exemplo, na Grécia e em Portugal.
Há dez anos que o mundo vive o que se chama um “bull market”, com otimismo nas bolsas americanas, com a Europa num boom imobiliário, com uma China a crescer e a investir fortemente internamente e a exportar para todo o mundo. Toda uma dinâmica quase contínua e imparável, unicamente e temporariamente interrompida pelo Covid mas depois novamente embalada por políticas monetárias expansivas nos Estados Unidos e na Europa.
Vivemos hoje talvez um momento “Retrato do Dr Gatchet”, em que, antes de mudanças no clima económico, há sempre um momento em que o otimismo atinge proporções emblemáticas, quase exuberantes. O mundo tem estado a chutar a lata rua abaixo, sabendo que um dia a lata vai ter que parar, que a paragem da lata representará uma travagem nas dívidas dos países, nos inúmeros resgates, nas injeções de capital, nas políticas monetárias infinitas e na subsidiação constante das atividades económicas. Já com o antibiótico e o mal, a comparação é feita com o fenómeno das dificuldades e injustiças económicas e da inflação, inflação, que primeiro aparece devagarinho e depois de repente. O remédio para as dificuldades económicas tratado sempre com as mesmas soluções (sempre pelo lado monetário), deixa de ter o efeito desejado quando já se entrou numa realidade de inflação que afeta bens essenciais ao invés de ativos. O remédio deixa de funcionar pois quando o dinheiro procura refúgio em matérias-primas necessárias e bens essenciais, esse mesmo remédio deixa de ser uma solução mas sim um veículo para um mundo mais difícil, mais desajustado, mais desigual e mais disfuncional.