A história dos povos é uma viagem ininterrupta pela compreensão do presente nas suas imensas dimensões. Há eventos históricos, assim como pessoas individuais e coletividades, que marcam de forma pautada as divisões do tempo, obrigando ao parcelamento em épocas e à organização da informação dos acontecimentos variados no tempo curto, médio e longo, numa narrativa descritiva e sequencial. É precisamente esta a definição da humanidade para a “memória”.

É por causa da “memória” que sabemos quem somos como indivíduos e como em agregação com outros, formamos um coletivo nacional, porque a definição de um país não se esgota nas suas fronteiras, é sobretudo e essencialmente a sua memória (língua, cultura, religiões, Estado) e a forma como a aceita e integra no seu presente e nas suas ações, servindo de base para um tempo futuro que ainda está por chegar.

Por isso é fundamental a memória para a projeção do ideal de nação, ter consciência dessa memória permite fazermos escolhas, tomar decisões e fundamentalmente, fazer uma reflexão sobre o nosso papel no meio que nos rodeia. Saibamos nós ter capacidade para educar as novas gerações.

É precisamente isto que podemos encontrar no Reino Unido, existe a clara percepção dos vários papeis das instâncias do Estado. Não existe vergonha nacional, mas sim entendimento. Alias é este entendimento que permite que as tradições do Estado renovem o país e que impelem a população ao progresso, às mudanças geracionais e às alterações da sociedade.

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São estas tradições, materializadas pela monarquia constitucional, o governo e as duas câmaras do parlamento que permitem a renovação na continuidade, e que constantemente recusa a revolução política como força de mudança, mas que pela constante adaptação por via reformista, permite as revoluções sociais no tempo, sem tumultos que ameacem a identidade nacional.

Talvez seja exatamente por isto que a morte da rainha de um país estrangeiro, com língua e cultura diferente da nossa, nos causa reconhecimento, tristeza e perplexidade. As cerimónias a que assistimos são um exemplo de dignidade de Estado, de reconciliação com o passado, de transferência de testemunho, e renovação de eras e de memória.

Esta, é talvez, a maior diferença entre Portugal e o Reino Unido. A nossa história recente é pautada por sucessivas revoluções políticas, na sua maioria revoluções das elites da sociedade cosmopolita. Estas revoluções políticas praticamente não acompanharam as necessidades dos portugueses e, portanto, as revoluções políticas não foram revoluções sociais no sentido popular do termo.

Ou seja, em Portugal, até 1974, o guerrear constante pelo controlo do poder do Estado raramente teve como objectivo o serviço à nação. Ao passo que a coroa e sobretudo Isabel II, através do sistema constitucional, democrático e livre, deixou que a sociedade fizesse a sua transformação por si própria, e desta forma foi a garantia da estabilidade, da memória da nação e do equilíbrio necessário para se focarem no essencial. A tríade constitucional do Estado Britânico impediu devaneios tirânicos.

Por incrível que pareça este sistema que à primeira vista é imutável e conservador, é o essencial para fazer do mundo britânico um exemplo de adaptação, não abrindo mão da sua relevância internacional.

É factual a transformação da sociedade britânica, Isabel sobe ao trono, numa sociedade ferida pelas mortes e destruição ocorridas na II Guerra Mundial, e a partir dai transformou o seu império colonial na Commonwealth, uma organização de 53 países amigos, de cultura e interesses políticos comuns. Concretizando uma descolonização amigável.

Foi a monarca que viu surgir as revoluções sociais e culturais dos anos 60. Na música com o Beatles ou os Rolling Stones, com o surgimento de novas formas de interpretar as ideologias, na transformação dos comportamentos cívicos, sexuais e de movimentos pela paz. A verdadeira abertura a um mundo novo, mais leve e desempoeirado.

A transformação foi de facto enorme, e ela foi a figura conciliadora entre um mundo antigo herdado da 1º parte do seculo XX e o mundo em constante mudança da 2º metade deste século.

Um ícone, um exemplo de serviço aos cidadãos, uma força que permitiu manter a identidade nacional, no século da mudança mais rápida da história, foram 96 anos de progresso constante, de equilíbrio constitucional e liderança de uma das maiores nações do mundo que apesar das transformações, mantêm influência no mundo – a prova é que milhões têm assistido ao seu funeral e à ascensão do seu filho, Carlos III.