O filósofo norte-americano Richard Rorty ocupa um lugar especial no cânone da Filosofia Contemporânea. Após ter obtido reconhecimento académico no domínio da filosofia analítica no início da sua carreira, Rorty afasta-se dessa matriz com a publicação de A Filosofia e o Espelho da Natureza, em 1979. Aproximando-se, a partir daí, da designada filosofia continental e da tradição hermenêutica e literária, Rorty critica o “intolerável paroquialismo” do seu departamento de tradição analítica. Mas é a sua crítica à falta de consideração histórica dos analíticos que é especialmente relevante:
“Continuo a considerar perturbador que tantos jovens filósofos analíticos não vejam necessidade de perguntar de onde vêm os problemas em que trabalham e considerem o estudo da história da filosofia um requisito curricular aborrecido. Os estudantes de filosofia que evitam o estudo histórico e a reflexão metafilosófica estão a condenar-se a ser especialistas em problemas efémeros, sobre os quais os seus professores se encontram a escrever quando estão na universidade. Isto muitas vezes deixa-os a questionar por que razão, anos mais tarde, ninguém está interessado nos tópicos a que eles devotaram a maior parte das suas carreiras.”
Este aspeto da filosofia analítica resulta da sua tentativa de aproximar a filosofia ao modelo científico e teve como consequência a desconsideração da dimensão histórica que é fundamental para o pensamento académico. Em última instância, levou a que os estudantes ignorassem textos clássicos fundamentais, sem conhecimento dos quais dificilmente se pode dizer que existe filosofia. (Mais sobre a complexa discussão em torno da divisão entre filosofia analítica e filosofia continental com Sofia Miguens, aqui.)
Mais de quarenta anos depois, a desconsideração pela História notada por Rorty é ainda mais evidente, mas os culpados não se encontram apenas nos departamentos de filosofia analítica. A responsabilidade passa também pela visão economicista e utilitária da universidade e do conhecimento que conduziu a uma desvalorização sucessiva das Humanidades. Mas também se encontra na cultura de suspeita, que surge nos Estados Unidos, paradoxalmente, a partir da própria filosofia continental (que Rorty, mais tarde, também repudiará).
De acordo com esta cultura de suspeição, baseada numa filosofia da revolta de estilo rousseauniano, devemos desconfiar de todas as instituições sociais como albergando estruturas de poder opressoras. E a História, enquanto instituição humana, não só não pode escapar à suspeita como constitui o seu objeto mais relevante, como os movimentos recentes de silenciamento, renomeação e derrubamento têm demonstrado. Centrados na luta e revolta presentes e ignorando o papel da tradição e da História, os agentes da suspeita vão derrubando os cânones da civilização. Não para os substituir por outros nomes igualmente relevantes que a dinâmica histórica teria ignorado (o que seria legítimo), mas com o simples objetivo de destruir as referências culturais e filosóficas do Ocidente a partir de juízos anacrónicos e simplificadores.
A vítima mais recente da cultura da suspeita é, lamentavelmente, o filósofo escocês David Hume. Um nome de tal forma importante para o pensamento filosófico, tendo em conta a influência que teve nos grandes pensadores que se seguiram (em especial, Immanuel Kant), que podemos afirmar que não pensaríamos hoje como pensamos sem a existência de Hume.
Os seus contributos vão da Ciência à História e da religião à política, sempre a partir de uma reflexão empírica. Essa valorização da experiência fá-lo atribuir especial importância política ao passado, de acordo com o sentido que Alexandra Abranches expressa em História da Filosofia Política (org. João Cardoso Rosas): “O passado não vale por ser passado, mas por ser útil. Não tem autoridade intrínseca, simplesmente o senso comum ou costume é o melhor guia para a ação humana, porque se funda na experiência.” E talvez esta seja a grande lição de le bon David.
Devido a uma petição que recolheu apenas 1700 assinaturas, a Universidade de Edimburgo decidiu retirar o nome de Hume de um dos seus edifícios principais. Mas poderá uma civilização que não é capaz de compreender a dinâmica histórica e de guardar as suas referências ser considerada uma civilização? O argumento que Bertrand Russel popularizou com a vida de um peru continua a ecoar nas manhãs de inverno em que o sol parece não nascer. Afinal, como podemos ter a certeza de que o sol nascerá amanhã?, perguntou Hume no século XVIII. Em 2020 convém perguntar: como podemos ter a certeza de que, seguindo este caminho, haverá civilização amanhã?