Há um super-homem que sabe tudo que se passa no seu país. Desde o poema de Camões que não constava no programa e saiu nos exames nacionais, aos suicídios nas cadeias portuguesas, aos problemas do Metro de Lisboa e do Porto, às, sempre alegadas, irregularidades das contas do Benfica. Como esse super-homem não é assim tão poderoso, desloca-se quinzenalmente ao fórum, mas vai acompanhado de todos os seus generais, que permanecem calados. Apenas quando um deles está desaparecido em combate é substituído por um dos seus lugares-tenente. Aí, é exposto aos ataques de todos os lados e responde sozinho com o melhor da sua arte quando pode e sabe. Quando não sabe, espera que algum dos seus generais lhe faça chegar a informação relevante. Se não a recebe, usualmente, não responde. Já aconteceu a informação chegar tardia e a resposta que dá ser célere, mas errada, e ter de ser corrigida depois com o devido pedido de desculpas. Afinal este homem não é super, é humano, demasiadamente humano.

Ter-se-á percebido já que não acompanho o clamor mediático que se gerou contra o fim dos debates quinzenais com o primeiro-ministro, mas também discordo da proposta aprovada. O governo não é o primeiro-ministro (PM). A ideia de alternar debates gerais com o PM com debates com ministros setoriais, que foi aprovada, parece adequada e realmente mais escrutinadora da atividade governamental do que os atuais debates quinzenais. Esta alternância, caso fosse quinzenal, garantindo a presença mensal do PM seria o modelo ideal.

O novo regimento da Assembleia da República, que acaba de ser aprovado, é a mais importante mudança desde 2007 nas regras parlamentares e as alterações foram vastas e não se resumem ao debate quinzenal. Mudou a forma como se tratam os votos parlamentares (pesar, congratulação, etc.), como são considerados os projetos de resolução (PJR), as regras processuais para agendamentos de projetos de lei e de resolução, as competências do Presidente da Assembleia da República, os direitos de grupos parlamentares, deputados únicos representantes de partidos e deputados não inscritos.

Uma reforma desta envergadura, tendo as implicações que tem, deveria ter merecido um maior estudo e um maior debate. Dignificar o parlamento significa antes do mais o governo respeitar o parlamento, os deputados saberem fazer-se respeitar pelo seu comportamento ético e as direções de grupos parlamentares respeitarem os seus deputados. Isso significa, sobretudo em casos onde é imposta a disciplina de voto, esclarecer e debater com o grupo parlamentar. Os casos de “rebeldia” no PSD e os desalinhamentos no PS são por isso perfeitamente justificáveis. Dignificar o parlamento exige que se esclareça a divisão de trabalho entre plenário, comissões e grupos de trabalho no seio das comissões. Que se faça uma adequada repartição de tempo entre as três principais funções da AR – a legislativa, a fiscalização política do governo e a conexão com os cidadãos e as organizações da sociedade civil. Dignificar, significa usar o tempo de forma eficiente em cada uma destas funções e repartir o poder de forma justa entre o presidente da AR e os grandes, médios e pequenos grupos parlamentares, bem como deputados únicos representantes de partidos e “não inscritos”. Sim, alterar regras regimentais significa alterar o poder de cada um destes atores do jogo político parlamentar.

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O novo regimento tem coisas boas e outras más. É importante que se tenham passado para o regimento práticas consolidadas, que estavam em “acordos de cavalheiros” (sim, sobretudo cavalheiros), escritas em documentos não públicos! É patético que um secretário da Mesa (Duarte Pacheco) diga que Joacine Katar Moreira – que não apresentou o seu projeto de Lei da nacionalidade a tempo por desconhecer uma regra não regimental — deveria conhecer a regra dos “agendamentos por arrastamento”, regra essa que não estava no Regimento, mas numa súmula de uma conferência de líderes, um documento, repito, não público. As regras importantes da AR têm de estar todas escritas no regimento. Esta agora está.

Na realidade o que aconteceu nos últimos anos foi a conferência de líderes (CL), que tem genericamente sido muito útil no funcionamento parlamentar e na “assessoria” ao presidente, ir assumindo prerrogativas regulatórias, à margem e para além do regimento. Isso aconteceu sobretudo no que toca aos agendamentos, aos votos e aos projetos de resolução. Todas estas novas regras foram agora vertidas no regimento, sendo finalmente transparentes.

No que toca aos direitos das minorias – deputadas não inscritas – houve algum progresso, mais rapidez na informação da conferência de líderes onde não têm assento, mas continuamos no domínio da inconstitucionalidade pois não estão assegurados direitos mínimos, previstos na Constituição, para estas deputadas. Podem intervir, podem elaborar projetos de lei, mas…. não podem levá-los, nem um único (!), a votação se não for por “arrastamento”.

Naquilo que é mais importante, acabar com ineficiências no uso do tempo parlamentar, os progressos são limitados. O regimento, no passado, aumentou a tipologia de debates, mesmo quando não previstos na Constituição. É o caso dos debates temáticos que ocupam tempo, mas geralmente não têm valor acrescentado nem suscitam a atenção nem dos próprios deputados nem da opinião publicada e pública. São apenas debates que, de acordo com o velho (e o novo) regimento deveriam ser propostos com base num documento enquadrador, coisa que raramente aconteceu no passado. Logo das duas uma, ou se suprimiam definitivamente, sendo fiel à Constituição, ou se exigia a obrigatoriedade e não apenas o dever do tal documento enquadrador. Sempre teríamos, potencialmente algum valor acrescentado.

Esta reforma regimental deveria ter tido objetivos claros. Quer-se reforçar o caráter competitivo da democracia ou dar espaço para que haja também cooperação política? Pretende-se melhorar a atividade legislativa, a fiscalização política ou a ligação aos cidadãos? Dado que o tempo parlamentar é um recurso escasso há sempre que fazer opções.