1 A votação na generalidade e especialidade do OE2020 deixa várias preocupações para esta legislatura. O primeiro orçamento aprovado apenas com os votos de um partido minoritário, com uma geometria variável na aprovação das propostas, não é aquilo que dá tranquilidade aos portugueses se pensarmos que o caminho que ainda temos pela frente é longo. Portugal, não precisa apenas de um orçamento aprovado. Precisa de dez orçamentos consecutivos coerentes e integrados numa estratégia económica, financeira, ambiental e social que consiga colocar as dívidas, pública e externa, a níveis razoáveis.
O OE2020 pode ser analisado sobre várias perspetivas. Uma é na generalidade, saber se foi feito de forma clara, responsável, transparente e rigorosa. Se considera as contingências futuras, se clarifica as inevitáveis opções do governo e se faz uma análise de sensibilidade aos riscos que existem (taxa de juro, preço de petróleo, etc.). A análise que o IPP, um think tank sediado no ISEG, faz do OE2020, é que, apesar de ser o melhor dos últimos 11 anos, mesmo assim tem uma nota de insuficiente. A melhor avaliação do IPP é o facto dos saldos orçamentais contribuírem para a sustentabilidade da dívida pública (apesar desta não implicar ter um excedente orçamental). A pior é a opacidade que existe no OE nas relações financeiras com o setor empresarial.
2 Outra perspetiva de análise é olhar para o próprio processo de debate e discussão que conduziu à aprovação e rejeição dos artigos da proposta de lei inicial e das propostas de alteração apresentadas pelos partidos. Foi um processo racional? É um processo justo e cumpre as regras processuais e regimentais parlamentares? Os partidos e deputados sabem o que estão a votar? Também aqui, o processo de votação deste OE2020 abriu um precedente que me parece bastante perigoso, sobretudo porque antevejo que a fragmentação parlamentar vai manter-se. Como se perceberá, por quem acompanhou as votações do IVA da eletricidade parcialmente explicadas aqui, o resultado final dependeu, do que David Dinis chama de truque, mas que eu prefiro intitular de atropelo às regras de votação parlamentares. A construção dos guiões de votações obedece a regras razoáveis, algumas escritas, outras não, e que tentámos racionalizar na última legislatura. Por exemplo, as propostas são votadas por ordem de entrada, mas agrupadas junto do mesmo artigo da proposta de lei do OE. Nas propostas do IVA vota-se primeiro as que propõem a baixa para 6% (Lista I anexa ao código de IVA), e só depois as que propõem baixar para 13% (Lista II). Dentro de cada proposta votam-se os números por ordem sequencial. Estas são as regras que têm sido praticadas nas votações, regras que só deveriam ser alteradas por unanimidade. Não foi isso que aconteceu. Primeiro, o PSD pediu para, em comissão de orçamento e finanças, alterar a ordem de votação na sua própria proposta. Votar-se primeiro b) as compensações (corte na despesa), e só depois a) a descida do imposto em linha com o que politicamente defendeu. Ao contrário da ordenação na proposta. Como b) foi rejeitado retirou a) que não foi votado (a descida). Teria sido muito melhor se tivesse redigido de outra forma a proposta para não subverter as regras. Depois em plenário, o PS fez semelhante. Propôs que se votasse primeiro a proposta de compensação e só depois a descida unilateral para 6% (proposta pelo PCP), sabendo de antemão que com esta ordem, e apenas com esta ordem, seriam ambas derrotadas. O PSD contestou e votou-se a alteração na ordem da votação. Ora, sobre as regras de votação não deveria haver votos. Escritas ou não, aplicam-se as regras, e só se mudam por unanimidade e nunca por maioria. Não se mudam regras a meio de um jogo. Foi o que aconteceu abrindo um perigoso precedente para o futuro.
3 Uma terceira dimensão é a análise substantiva do OE2020 aprovado. Concordo com muitas medidas, pelo que mesmo como não inscrito teria votado favoravelmente, mas discordo de outras. Começando precisamente pelo IVA da eletricidade, já dediquei um artigo aqui defendendo a baixa do IVA para a taxa intermédia (13%) com eventual, mas não necessária, compensação através de ligeiro agravamento da tributação do diesel. Mas critico a descida para os 6%. A proposta do BE era a posição intermédia, entre não baixar e ir para os 6% e aquela que deveria ter tido acolhimento. Livre, CDS e PAN ao chumbarem esta proposta, com o PS, ficaram muito mal na fotografia por diferentes razões. O PAN porque não só a medida foi defendida inicialmente, como porque a compensação na proposta do BE (subida do IVA da hotelaria par 13%) consta do seu programa eleitoral. O CDS porque vota contra uma baixa moderada de imposto. O Livre porque também consta do seu programa.
4 Muitas outras medidas, ou não estão no OE2020 ou estão de forma casuística.
Portugal é dos países da União Europeia em que existe maior prevalência de diabetes. Há um programa nacional de diabetes, com a respetiva coordenadora. Há metas a alcançar para 2020, mas quando se vai à procura da dotação no Orçamento do Estado destinado à prevenção da diabetes, nomeadamente tipo II (associados à obesidade e estilos de vida sedentários), não se encontra nada. O Orçamento é omisso, quer no articulado quer no Relatório. Parece não interessar que as estimativas apontem para que os gastos em diagnóstico, medicamentos e tratamento associados a doenças resultantes de diabetes representem cerca de 9% da despesa total do SNS. Aprovou-se uma medida para fornecer bombas de insulina gratuitas para maiores de 18 anos a pessoas com diabetes tipo I. Financia-se o dispositivo médico para quem está doente, mas não se financia a diminuição dos doentes e a prevenção. Quando é que se leva a sério a prevenção da diabetes? Teremos de esperar…
5 Aprovou-se uma proposta do CDS para que os recrutas recebam o salário mínimo nacional (635€) ficando acima dos estagiários do IEFP com qualificação de nível pós secundário mas não superior (nível 5) que se ficam pelos 610€. O problema das alterações salariais casuísticas, como esta, é que criam frequentemente maiores injustiças do que as que pretendem corrigir.
Neste OE2020 deu-se um passo para a eliminação dos vistos gold, mas ainda pequeno (só Lisboa e Porto). Como referi em intervenção na Assembleia da Republica, enquanto deputado não inscrito, a cidadania e a residência não podem depender da condição económica. Outro passo pequeno no bom sentido foi o da tributação de não residentes, em sede de IRS, agora à taxa de 10%.
6 Este governo assenta, de momento, política e tecnicamente num tripé. Em Costa, que não faz tenção em reformar-se tão cedo. E em Jerónimo e Centeno que estão de saída. Como será a recomposição do tripé depois? Em política as relações pessoais contam. Se Costa e Jerónimo, não serão os best friends forever, a colaboração entre ambos contruiu uma relação que não será facilmente substituível. Até agora o PCP, não só teve um papel crucial na criação da “geringonça”, mas no início desta legislatura foi o parceiro preferencial do governo. A sua abstenção neste OE foi apenas um sinal de estado de graça dado ao governo no próximo ano. Acontece, porém, que o PCP terá o seu congresso de 27 a 29 de Novembro de 2020, ou seja, na altura em que o orçamento de Estado 2021 estará a ser votado. Se Jerónimo sair de secretário-geral nessa ocasião, é provável que o seu substituto seja mais afastado, quer pessoal quer politicamente, de Costa e do PS. Nesse caso, dependendo da situação económica e social do país, o sentido de voto do PCP em 2021 poderá perfeitamente evoluir da abstenção (uma inovação este ano) para o voto contra. O BE também não terá saído muito satisfeito desta negociação do OE2020.
O PS de António Costa será avaliado em 2023 pelo estado em que estiver o país na altura, e não pelo eventual excedente orçamental de 2020. A equipa que tem dirigido as finanças nestes cinco anos veio do grupo do cenário macroeconómico (Centeno, João Leão, Mourinho Félix e Rocha Andrade) ou afim (Álvaro Novo). Uma maioria de economistas qualificados, com apenas um jurista nos assuntos fiscais (agora Mendonça Mendes). É essencial dar continuidade à política orçamental, melhorando onde necessário. É certo que temos agora instituições públicas (Conselho de Finanças Públicas e UTAO) e um think tank (Institute of Public Policy) que monitorizam as Finanças Públicas, e que tentam evitar que se façam grandes disparates no futuro. O problema é que as passadas bancarrotas do país, não resultaram de um único erro de política orçamental, mas de um sistemático mismanagement das finanças públicas. Sem Jerónimo no PCP, com uma postura sobranceira de governação, sem Mário Centeno e com menos quadros qualificados, o PS terá cada vez maiores dificuldades na governação.