Quando Portugal for uma democracia amadurecida (ainda não perdi a esperança), o partido vencedor das eleições, e com mais mandatos na Assembleia da República, mas sem maioria absoluta, tentará de imediato formar uma coligação maioritária para tentar assegurar a estabilidade política ao longo da legislatura. Dela precisamos, como pão para a boca, nos próximos dez anos enquanto estivermos numa zona de vulnerabilidade financeira. O PS fez mal em não se empenhar numa coligação com o único partido que estava disponível para esse acordo: neste caso o Bloco de Esquerda. Os acordos escritos dão maior estabilidade política, porque são claros, transparentes, previsíveis, e sabe-se quais são as linhas vermelhas pelo que neles constam ou é omisso. Foram uma das razões do sucesso da legislatura passada. Já as negociações são como alguns dizem das massagens: sabe-se como começam, mas não se sabe como acabam. Podem gerar inconsistências, incoerências. Podem ter um impacto imprevisível no défice orçamental.

A votação do OE2020 na generalidade foi aquilo que se esperava. Os partidos de direita votaram contra e os de esquerda (incluindo o PAN), mais os autonomistas social democratas da Madeira abstiveram-se. Nem podia ser de outro modo. Se um partido está na oposição, e todos excepto o PS estão, não pode votar a favor logo na generalidade. Perderia toda a capacidade de negociação na especialidade. Todos sabem que a votação sobre um orçamento é essencialmente política. As exigências de medidas orçamentais vão começar agora no debate na especialidade. O que se vai então seguir na especialidade? Inexistindo acordos há mais liberdade de voto de todos os partidos e o PS poderá e irá certamente ser derrotado nalgumas propostas na especialidade. É fácil ver em que situações.

Comecemos pela aritmética parlamentar. Propostas da iniciativa de  BE ou do PAN, também subscritas pelos partidos de direita, somam 109 votos SIM, mais um do que o PS (108 votos NÃO). Mesmo com a abstenção dos restantes (PCP+PEV+Livre)  essas propostas seriam aprovadas. Aqui um voto fará a diferença, mas é provável que Livre alinhe com BE e PAN. O fiel da balança nesta situação poderá ser o PEV (ou o PCP). Se for uma proposta de esquerda e o PCP não puder votar ao lado do PS, poderá pedir ao PEV para fazer de mártir e, apenas o PEV votar com PS. Neste caso  chegamos a um empate a 110 votos e a proposta não é aprovada. Por maioria de razão, se PCP votar com PS, todas as propostas passam. Costa, inteligente como é, escolheu o partido da esquerda relativamente mais fraco, eleitoral e programaticamente, mas mais previsível, que lhe permite fazer passar as suas propostas: o PCP. Esta táctica funciona sempre para aprovar propostas do governo e do PS, a menos que seja uma proposta que o PCP e o PEV considerem “patriótica e de esquerda” e que não podem votar ao lado do PS. O PS passará a maioria das suas propostas. Todas as propostas de alteração ao Orçamento de Estado de PSD e CDS  que sejam lidas como de direita (independentemente de o serem ou não) serão chumbadas. Só passarão as propostas, sobretudo de BE e PAN, eventualmente de PCP e PEV, raramente de PSD e CDS, cuja temática seja mais transversal e que não sejam facilmente identificáveis na dicotomia esquerda/direita (e.g na área do ambiente e dos direitos humanos).

Apelidar de “coligações negativas” todas as propostas que sejam aprovadas à revelia de PS/governo é claramente excessivo. Equivaleria na prática a dizer que todas as propostas do governo seriam “positivas” e que não haveria alternativa benéfica para o país às propostas do governo. Não só é absurdo, pois foi o PS no tempo de Passos Coelho que vincou que há sempre alternativas, como o facto do PS não ter tido maioria absoluta indicia que os portugueses consideram que é importante ter várias visões do que é o interesse público e não apenas a do governo PS.

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Serão “coligações negativas” se a conjugação de votos contra a proposta do governo resultar de um mero objetivo de o derrotar e não das convicções ideológicas e programáticas dos partidos. O caso da contagem integral de tempo de serviço dos professores é um exemplo paradigmático disso, o que levou PSD e CDS a alterarem o sentido de voto. Mas serão “coligações positivas” se todos os partidos votarem em linha com as suas convicções, como seria, por exemplo, o caso da baixa da taxa de IVA da eletricidade para a taxa intermédia com medidas de compensação fiscal (total ou parcial) do lado da receita.

Como reagirá o PS a coligações “positivas” ou “negativas” que derrotem as suas propostas?  Fazendo uma análise custo-benefício na dimensão financeira e política. Sendo, felizmente, adquirido o valor social das “contas certas”, propostas que agravem significativamente o défice (mais do que duas décimas do PIB) terão um tipo de reação. Neste caso o PS poderá defender, e bem, que desvirtua o orçamento e ameaçar com crise política. Sabendo isso, Bloco e PAN (que até inscreveu a seu modo as contas certas no seu programa) não deverão apresentar essas propostas. Agora ninguém acredita que uma proposta que agrave o défice em 150 milhões possa ser usada pelo governo para abrir uma crise política, sobretudo se for numa área socialmente querida (e.g. investimentos em meios auxiliares de diagnóstico em grandes centros hospitalares públicos).

A inexistência de acordos aumenta a imprevisibilidade das votações. O PS aprovará a maioria das suas propostas, mas haverá propostas sobretudo oriundas da esquerda em que será derrotado. Esperemos que por coligações positivas e não negativas.