Amanhã começa a maratona de votações do OE 2022. Em crónica anterior sugeri aos deputados que fizessem 100 propostas de alteração e não 1547 como no OE2021, dada a maioria absoluta e o quase caos em que se está a tornar a votação das propostas de alteração. Afinal são agora 1500. O OE que vai ser votado esta semana é o primeiro de uma legislatura em que há duas questões relevantes que se colocam. Será o governo capaz de iniciar uma transformação estrutural da economia portuguesa para aumentar o seu crescimento potencial e evitar o empobrecimento relativo do país? Que política orçamental e de rendimentos tenciona o governo implementar?
A questão essencial hoje não é se devemos fazer consolidação orçamental e reduzir o peso da dívida pública no produto, e o défice orçamental, algo sobre o qual existe alargado consenso. O Estado deve acompanhar o esforço que estão a fazer as empresas e as famílias na redução desse endividamento. A questão é como, e a que ritmo, isso deve ser feito.
Há algumas semanas defendi que o caminho da consolidação orçamental neste OE não deveria nem restritivo, nem expansionista mas relativamente neutro. Em particular no que toca à actualização salarial dos trabalhadores em funções públicas, importante como referência para o privado, ela não deveria ser nem de 0,9% nem de 4% (taxa de inflação prevista) como propõem convictamente os partidos à esquerda do PS (pouco preocupados com a sustentabilidade das finanças públicas), e também agora, demagogicamente, o PSD (mais preocupado com a sua subida eleitoral). Sugeri um aumento de 1,8%, o que mesmo assim significaria uma perda de poder de compra em 2022, mas muito menor que o proposto pelo governo. Tal não criaria nenhuma espiral inflacionista pois a inflação prevista pelo governo para 2023 a 2026 é de 1,7%, o que significa que o próprio governo reconhece que parte da inflação de 2022 é estrutural.
Na altura não tinha ainda sido feito o trabalho do Budget Watch (os resultados do Budget Watch sairão na próxima semana) de verificação do realismo das previsões orçamentais. Agora, com a informação disponível de momento, e apesar da incerteza vivida, é possível prever que o défice orçamental vai ser, outra vez como aconteceu em 2021, menor do que o previsto por três ordens de razões: as receitas estão subestimadas (nos impostos diretos e indiretos), as despesas estão sobrestimadas, em particular as despesas de investimento (execução sempre abaixo do orçamentado nos últimos anos) e o crescimento do PIB nominal deverá ser acima do previsto. Ou seja, o meu argumento, agora reforçado, é o de que quer o objetivo para o défice, previsto no OE2022, quer o de redução da dívida (de 6,5 pontos percentuais do PIB), pode ser alcançado, mesmo com esse aumento salarial.
Da parte do governo ou dos deputados PS não vi um único argumento sólido que justifique a mesma atualização salarial proposta em Outubro (pré-guerra) face a uma inflação agora revista em alta para além da espiral salários-preços (que já refutei) e a precaução. Os únicos argumentos válidos que tenho lido são os de António Saraiva (em representação das confederações patronais) que considera que é utópico considerar um aumento de salários que mantenha o poder de compra dos trabalhadores, e que muitas empresas face ao aumento dos custos da energia não o comportam, e de Daniel Bessa que considera que um aumento maior dos salários no Estado (do que os 0,9%) levaria a uma situação discriminatória com os salários do privado que não poderiam acompanhar esse aumento, pois caso as empresas o fizessem estariam a contribuir para uma perda de competitividade da economia portuguesa. A posição que defendo significa, também, alguma perda de poder de compra real dos trabalhadores do público, e do privado se seguirem em média o público, mas menor que o governo propõe. Essa perda deverá ser aceite por todos em tempos difíceis em que vivemos, mas moderada. Não me parece que um aumento médio de 1,8% no privado, sobretudo nas empresas pouco afetadas pelo aumento de custos energéticos, numa economia que deverá crescer 7,8%, possa ser problemático.
Alerto, porém, que a manter-se esta perda de poder de compra nos próximos orçamentos, este orçamento inserir-se-ia, intencionalmente ou não, numa política económica de desvalorização interna, de redução dos custos laborais, para aumento de competitividade da economia portuguesa. Ou seja, no novo período inflacionista em que estamos é possível uma redução significativa no salário real dos trabalhadores com atualizações salariais muito aquém do valor esperado para inflação, o que acontece neste OE. Não me parece que esta seja a solução para o crescimento da economia portuguesa.
Se olharmos agora para a dimensão social do problema, que não deixa de ser relevante, é também de uma grave injustiça. Há na realidade uma geração de trabalhadores no ativo entre 2010 e 2030 que, a manter-se esta política económica, será a grande sacrificada no processo de consolidação orçamental em curso que terá de durar anos.
Esta via do empobrecimento relativo, e de diminuição de facto do peso dos salários no PIB, contraria sobretudo a narrativa socialista, e terá, a ser mantida, consequências políticas, desde logo no PS, e no aumento da representatividade de forças políticas radicais.
Para sermos claros. O OE 2022 apresenta uma política orçamental neutra de ligeira redução da carga fiscal e de redução do défice e da dívida. Porém, a execução deste orçamento levará provavelmente a uma política restritiva, de redução do défice maior que o previsto devido a um ligeiro aumento da carga fiscal e de uma redução do peso da dívida, muito além do que as regras europeias (suspensas) exigem. Não há razões, nem económicas, nem sociais nem políticas para que assim seja.
Passos Coelho e o PSD, foram além da troika, e não foi bom. António Costa e o PS poderão estar a ir, sem se dar conta, muito para além de algumas regras orçamentais o que também não é desejável para o país.
PS. Alguns dos argumentos aqui desenvolvidos foram expostos na conferencia da Ordem dos Economistas da semana passada. A questão da transformação estrutural da economia portuguesa é mais complexa. O contributo que o PRR, em particular o digital, pode dar para esse crescimento será também debatido para a semana.