“A Internet está a tornar-se a praça pública da aldeia global do futuro” – Bill Gates
Num mundo cada vez mais conectado, a legitimidade política pode ser aferida de várias formas, sendo que, em casos como o de Moçambique, a “prova dos nove” da regularidade eleitoral ultrapassa as velhas maneiras de medir o apoio popular. Se até há poucos anos poderíamos restringir a análise ao sufrágio e, no caso de contestação, à força das manifestações de rua, hoje é cada vez mais difícil ignorar o barómetro das redes sociais, onde se dão trocas de argumentos, partilhas de indignações e se podem medir apoios genuínos ou forjados.
Este barómetro é incontornável para perceber o que está a acontecer em Moçambique na sequência das últimas eleições. A legitimidade do Regime – nas mãos da Frelimo há praticamente meio século – parece claudicar não apenas no terreno, onde, apesar da repressão e do medo, o Regime não está a conseguir estagnar a contestação, mas também no espaço virtual, que se esperaria fosse palco de uma claque fervorosa em defesa do partido-Estado se, de facto, a maioria esmagadora do eleitorado tivesse escolhido a sua continuidade no Poder.
As discrepâncias são evidentes: primeiro, a Frelimo autoatribuiu-se uma vitória expressiva de 71%. Após a pressão internacional –com a União Europeia a encabeçar uma lista de organismos que apontam graves irregularidades – e a contestação interna, os números recuaram para 65%. Um “desconto” de 6 pontos percentuais que, ainda assim, faz crer que o “Povo” foi esmagador no apoio à Frelimo e nos convida a refletir: se um partido controla, ao que diz, pelo menos dois terços da vontade popular, por que não vemos uma expressão minimamente relevante desse apoio nas redes sociais?
Quando questionados sobre a dúvida que assola muitos de nós – “onde andam os apoiantes da Frelimo?” – os porta-vozes do Regime argumentam que, no terreno, reina um clima de intimidação e violência que afasta os seus potenciais apoiantes de demonstrações públicas. No entanto, que receio poderiam ter estes apoiantes do mundo digital? As redes sociais, além de serem relativamente mais anónimas – e, portanto, mais seguras para a livre expressão –, costumam ser o primeiro espaço onde aflora a defesa de quem (supostamente) se considera vitorioso. A lógica do “nós ganhámos, nós celebramos” costuma ver-se em qualquer canto do mundo, sob a forma de hashtags, memes, vídeos, transmissões em direto e outras ações de difusão digital.
O contraste em Moçambique é gritante. Enquanto o candidato Venâncio Mondlane tem uma força mediática impressionante, os ruídos, as publicações ou os simples gestos de apoio à Frelimo que seriam expectáveis para um partido que se diz representar a escolha inequívoca de pelo menos dois terços dos eleitores são praticamente inexistentes. Porquê este silêncio clamoroso, mesmo entre as classes mais jovens e digitais?
Quando um ato eleitoral suscita contestações em massa e vários relatórios de instituições internacionais apontam irregularidades, a capacidade de rapidamente confrontar a propaganda estatal com perceções reais no terreno e na esfera virtual torna-se uma boa forma de perceber se, de facto, estamos perante uma eleição justa e transparente ou, pelo contrário, se a fraude é evidente.
Nas redes sociais, o que se discute é a figura de Venâncio Mondlane: ele é o eixo do debate, recolhe apoio e, por vezes, críticas sobre o evoluir dos acontecimentos. O certo é que, como se assinalou, a esmagadora maioria dos moçambicanos está insatisfeita com o rumo do país, e não se vislumbra qualquer base social capaz de sair em defesa da Frelimo, quer nas ruas, quer nas redes.
O apagamento virtual levanta, assim, uma questão fundamental de legitimidade: onde se funda uma maioria autoproclamada nas urnas se, depois, essa mesma maioria não se expressa, não celebra, não defende, não participa, nem sequer no ambiente virtual, onde poderia manifestar-se de forma relativamente livre? Seria natural que houvesse um clamor em apoio ao partido-Estado, especialmente num país jovem que tem mostrado ser permeável ao uso das redes sociais.
Vivemos tempos em que o veredicto do povo – ou a prova da fraude – se torna cada vez mais visível e imediato, não apenas pelas marchas pacíficas ou discursos inflamados, mas pela discrepância entre os números oficiais e a ausência de entusiasmo popular online. É nesse hiato que encontramos a verdade de um regime cuja legitimidade está inevitavelmente posta em causa.
Mais do que um problema apenas de Moçambique, isto constitui um alerta para todos os regimes que, de forma autocrática ou meramente oportunista, julgam que basta dominar os processos eleitorais tradicionais (manipulando-os, se necessário) para garantir a perpetuação no Poder. Hoje, quem se proclama líder de “dois terços do Povo” dificilmente consegue esconder-se da prova de fogo que são as redes sociais – onde, ao mínimo descuido, fica exposta a falta de coerência entre a vitória oficial e o sentimento real de uma população farta de silêncios forçados.
A legitimidade, em democracia, mede-se pela vontade popular expressa nos boletins de voto. Mas não se pense que, nos dias de hoje, uma “vontade popular” forjada sobrevive às manifestações no debate público – seja nas ruas ou nas “timelines”. Em Moçambique, desta vez, o esvaziamento da Frelimo ficou evidente. Veremos até que ponto o seu povo e a comunidade internacional aceitam prosseguir esta encenação de uma “democracia autoproclamada” que entra em rota de colisão com a grande maioria dos cidadãos.