Parece-me oportuno fazer algo ao qual parecemos já não estar habituados: refletir. Uma reflexão despida de opiniões médicas, é claro, porque de médico, virologista e especialista em pandemias não tenho nada.

É necessário, acima de tudo, apostar numa reflexão que faça ressurgir um tema que, achávamos nós (europeus, portadores de um orgulho imenso da liberdade de que usufruímos em todos os aspetos da nossa vida), era dado como “garantido” e carecia de debate apenas no que diz respeito a melhorias, sem nunca questionar as suas pedras basilares. Falo, portanto, dos direitos humanos.

A ciência nunca foi muito dogmática e, de refutação em refutação, foi sempre permitindo avanços como, por exemplo, a conceção de uma vacina em poucos meses. Mas a mesma ciência que faz da contraprova e da refutação a sua alavanca não pode servir como justificação para que poderes políticos instituam restrições aos direitos humanos ao sabor de avanços e recuos científicos que, futura e certamente, irão permitir a definição sobre coisas que, atualmente, não conhecemos a cem por cento.

É indispensável que se parta de um ponto essencial ao tema sobre o qual se pretende refletir: a vacinação nunca foi obrigatória. Foi dada a liberdade de escolha aos cidadãos, própria de um Estado de Direito, ao mesmo tempo que se multiplicavam os apelos para que todos fôssemos vacinados, como forma de combate à covid-19. Inicialmente foram dados sinais de que essa vacina, ao ser administrada, protegeria terceiros por ter a capacidade de conter a infeção mas cedo se percebeu que tal não acontecia e, portanto, chegou-se a outra conclusão: a vacina, ao revelar grande eficácia apenas contra a doença grave, é uma proteção individual que cada um de nós pode querer adquirir, ou não. Mas os sinais de que um apartheid sanitário estava perto de ganhar forma foram aparecendo e a passividade com que se aceitou, de forma geral, a obrigatoriedade de apresentação de certificados digitais inúteis (que apenas legalizavam a transmissão do vírus) foi o primeiro precedente aberto para que direitos, liberdade e garantias básicos fossem violados, contribuindo para a segregação entre vacinados e não vacinados.

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A cidadania, no contexto europeu, é concebida como intitulação de direitos pré-políticos e fundamentais, instrumento para a realização dos mesmos e protegida pelo Estado, e assenta, utilizando a obra de John Rawls, num liberalismo político que confere aos cidadãos, a partir das suas convicções razoáveis, a possibilidade de criarem a sua própria conceção daquilo que será o melhor para eles, sem a imposição de terceiros ou do Estado, ficando assegurada, portanto, uma democracia pluralista e multicultural, própria de uma sociedade liberal moderna, composta por diferentes doutrinas religiosas, filosóficas e morais, pertencentes a um quadro de pluralismo razoável. Ora, a partir do momento em que a vacinação contra a covid-19 não foi tornada obrigatória e passou a ser encarada, cientificamente, como uma proteção individual contra o desenvolvimento da doença grave, as medidas em questão (a necessidade de apresentação de passes sanitários para acesso a lugares e eventos públicos, o impedimento do acesso aos mesmos àqueles que não pretendem ser vacinados, o confinamento de cidadãos não vacinados, etc.), ao discriminar os indivíduos que não pretendem ser vacinados, violam o princípio liberal que configura a possibilidade de os cidadãos criarem a sua própria conceção daquilo que é o melhor para eles, por lhes serem restringidos direitos básicos e naturalmente associados ao exercício da cidadania em contexto europeu.

Ignora-se a evidência científica de que a carga viral de um vacinado e a de um não vacinado são idênticas mas continua-se a culpar os não vacinados pelo grande aumento do número de novos casos. Torna-se claro, portanto, que um transmite o vírus tanto como o outro mas continua-se a falar da imunidade de grupo enquanto certeza de que não será alcançada por culpa dos que não se querem vacinar, mantendo-se a tendência de fomentar a segregação da sociedade através do poder político, como se de uma situação de “preto e branco” se tratasse sem que se tenha em conta que a ciência é uma grande zona cinzenta e que é precisamente isso que a caracteriza.

Acabo esta reflexão com aquilo que me resta: sentir empatia seletiva por quem sofre com a doença e não por quem sofre com as consequências da “cura”; e aceitar passivamente que a categorização sanitária dos cidadãos e o precedente perigosamente aberto para a discriminação normalizada são sintomas graves de uma sociedade anestesiada e esquecida de uma das suas maiores conquistas: os direitos humanos.