Tssss tssss tssss. Então o homem faz anos e ninguém avisa? Francisco Buarque de Hollanda, digo. Mil desculpas pelo esquecimento, é sem querer.
Polytheama, Polytheama
O povo clama
Por você
Polytheama, Polytheama
Cultiva a fama de não perder
Chico Buarque reúne a maior qualidade de todas, a de reinventar-se constantemente. Aos 76 anos de idade, Chico não só é um dos maiores nomes da música popular brasileira desde 1966, aquando do lançamento do primeiro álbum, como é um homem de virtudes mil, cheio de energia. É um inventor nato. Primeiro, inventa o Polytheama, o seu clube de futebol. Depois cria um hino. E define o plantel, claro. O seu número é o 10 e ai de quem ouse desafiá-lo a trocar. É dele, ponto. Até porque Chico é nota 10 em tudo o que faz.
Quando o Polytheama está em vantagem, algo muito comum pela qualidade do seu número 10 e, vá, do resto da garotada, Chico fala alto para os companheiros. “Vamos fechar a defesa, 10-0 não é nada.” Ou então, “Olha, gente, o time deles parece ruim mas não é, não”. Ou ainda “Vamos tomar cuidado, o time deles tem um cara que é inteligente e um outro que sabe chutar”. É só rir. É Chico em todo o seu esplendor.
Como em Abril de 1980, quando Bob Marley (o maior expoente da música jamaicana), Junior Marvin (guitarrista do Wailers) e Chris Blackwell (director da Island Records) chegam ao Brasil para participar numa festa da Island, a famosa editora discográfica. Aterram em Manaus para reabastecimento. E não só. A ditadura militar do Brasil não vê com bons olhos aquela comitiva ‘esfumaçada’ e retém o jacto por três horas. Só após longas negociações as autoridades cedem ao desejo da equipa de Bob Marley. Sem vistos de trabalho, o que impede a improvisação de um concerto, do agrado do povo brasileiro louco por reggae.
De Manaus para Brasília. Do Distrito Federal para o Rio. É aí, com três horas de atraso, que os jamaicanos correm atrás do tempo, em direcção ao quilómetro 18 da Avenida da Sambaetiba, para um campinho onde estão à sua espera Chico Buarque, Toquinho, Alceu Valença e outros, todos da equipa da Island. As equipas são definidas num instante e escreve-se um dos mais belos poemas com Bob Marley, Junior Marvin, Paulo César Caju, Toquinho e Chico Buarque. As imagens televisivas não mentem: é equipa de deuses.
Antes de começar o jogo, Bob Marley ganha uma camisola 10 do Santos e sorri: “Pelé”, diz. De seguida, avisa todo o mundo que joga em qualquer posição. Um (poli)valente, portanto. No final, um claro 3-0. Golos de quem? Chico. Lá está, o homem é bom de bola. E de música. E de muitos atributos mais.
Muito por culpa do seu temperamento jovial, tem uma habilidade incomum para criar histórias e imaginar personagens. Exemplo: nos anos 90, no Uruguai, um motorista de táxi reconhece-o, Chico desmarca-se como se fosse um extremo. Diz que é filho de Manga, um guarda-redes brasileiro caído em desgraça no Mundial-66, após sofrer um golo de cabeça do português Simões na derrota por 3-1. No Brasil, há quem seja apanhado de surpresa pelos dribles de Chico. Em Colatina, no Espírito Santo, ouve de uma pessoa “ué, conheço o senhor. É da TV, né?” Chico nem pensa duas vezes, “Sou o novo técnico do Colatina”, que luta para sair da 3.ª Divisão. No interior paulista, finge-se de sul-africano na recepção de um hotel. O senhor do lado de lá não acredita, esboça um sorriso e Chico começa a falar um dialecto diferente, inventado por ele na hora.
No auge da Ditadura Militar no Brasil, cria o pseudónimo Julinho da Adelaide para fazer frente ao regime e chega a dar entrevista para o jornal “Última Hora”. Uma outra vez, veste-se de motoboy, um dos muitos milhares a circular em São Paulo de um lado para o outro a entregar tudo e mais alguma coisa. A sua ideia é atravessar a cidade incógnito para dar flores de aniversário a uma amiga. Missão cumprida, e até ganha gorjeta. Com capacete também eu, olha olha.
Da sua cabeça sai um país chamado Tita, onde “as pessoas se expressavam numa língua monocórdia em que as sílabas tinham o mesmo peso”. Ou seja, Teresa vira Térésá. Tem a mania de inventar cidades e ler mapas. Daí que seja o autor de Budapeste sem nunca ter ido à capital húngara. E à capital portuguesa? Alto lá e para o baile. Chico aterra em Lisboa pela primeira vez em Abril 1969 e vai ao Estádio da Luz no pré-revolucionário dia 25, com Eusébio. Quando lhe pedem para vestir a camisa do Benfica, a resposta é automática: ‘Se vou ser prior, tenho que rezar’. Veste o 10 de Eusébio e aguarda a chegada do verdadeiro dono desse número. O diálogo entre os dois, audível para a comunicação social, é curto. ‘Eu com a bola, você com o violão. A ver que resulta’. Chico em grande.
Antes de ir para os ensaios no Teatro Villaret, Chico responde aos jornalistas.
Chico, você gosta de futebol?
Muito. Sempre que posso, assisto aos desafios. Gosto de ir ver o meu clube Fluminense.
Em Portugal vai assistir a algum desafio?
Impossível. Há matinée. Eu bem gostaria. Mas em Roma, para onde sigo, vou com certeza. Embora não goste de futebol italiano.
Porquê?
Aquela defesa trancada. É verdade que eles têm goleiros excepcionais, mas eu gosto de futebol com golos, com gente que atire ao arco.
Como Pelé? Crê que ele voltará a ser o mesmo?
Pelé é Pelé. Não tenha ilusões. Ele está bem. O que se passa é que quando o rei faz uma partida mais modesta, toda a gente fala em decadência. Mas ele só tem 29 anos. Daqui a três anos então talvez se possa falar nisso. Agora não.
E Eusébio?
Só o vi na televisão mas tenho uma grande admiração por ele, como também por toda a equipa do Benfica. São grandes craques.
À saída, Chico despede-se de Eusébio. E ainda de Coluna e do compatriota Otto Glória, meio tímidos na presença de um músico já consagrado pela profundidade das letras. De raspão, pergunta-lhes se vão ao concerto desse domingo, dia 26. “Estamos em estágio, jogo importante de Campeonato’, diz Eusébio. Verdade, é a última jornada. Se o Benfica ganha em Tomar, é tricampeão. Dito e feito. Acaba 0-4, golos de Eusébio, José Augusto, Simões e Faustino (própria baliza). Eusébio só vai à matinée do Chico na terça-feira, horas antes de seguir viagem para Pousada de Saramagos, local de estágio da selecção portuguesa para o jogo com a Grécia, de qualificação para o Mundial-70, ganho pelo Brasil de Pelé. E também de Francisco Buarque de Hollanda.