Tssss tssss tssss. Então o homem faz anos e ninguém avisa? Francisco Buarque de Hollanda, digo. Mil desculpas pelo esquecimento, é sem querer.

Polytheama, Polytheama
O povo clama
Por você
Polytheama, Polytheama
Cultiva a fama de não perder

Chico Buarque reúne a maior qualidade de todas, a de reinventar-se constantemente. Aos 76 anos de idade, Chico não só é um dos maiores nomes da música popular brasileira desde 1966, aquando do lançamento do primeiro álbum, como é um homem de virtudes mil, cheio de energia. É um inventor nato. Primeiro, inventa o Polytheama, o seu clube de futebol. Depois cria um hino. E define o plantel, claro. O seu número é o 10 e ai de quem ouse desafiá-lo a trocar. É dele, ponto. Até porque Chico é nota 10 em tudo o que faz.

Quando o Polytheama está em vantagem, algo muito comum pela qualidade do seu número 10 e, vá, do resto da garotada, Chico fala alto para os companheiros. “Vamos fechar a defesa, 10-0 não é nada.” Ou então, “Olha, gente, o time deles parece ruim mas não é, não”. Ou ainda “Vamos tomar cuidado, o time deles tem um cara que é inteligente e um outro que sabe chutar”. É só rir. É Chico em todo o seu esplendor.

Chico Buarque, então com 24 anos, numa viagem feita à Europa em 1969 quando passou por Portugal (a imagem é junto a uma igreja de Roma)

Como em Abril de 1980, quando Bob Marley (o maior expoente da música jamaicana), Junior Marvin (guitarrista do Wailers) e Chris Blackwell (director da Island Records) chegam ao Brasil para participar numa festa da Island, a famosa editora discográfica. Aterram em Manaus para reabastecimento. E não só. A ditadura militar do Brasil não vê com bons olhos aquela comitiva ‘esfumaçada’ e retém o jacto por três horas. Só após longas negociações as autoridades cedem ao desejo da equipa de Bob Marley. Sem vistos de trabalho, o que impede a improvisação de um concerto, do agrado do povo brasileiro louco por reggae.

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De Manaus para Brasília. Do Distrito Federal para o Rio. É aí, com três horas de atraso, que os jamaicanos correm atrás do tempo, em direcção ao quilómetro 18 da Avenida da Sambaetiba, para um campinho onde estão à sua espera Chico Buarque, Toquinho, Alceu Valença e outros, todos da equipa da Island. As equipas são definidas num instante e escreve-se um dos mais belos poemas com Bob Marley, Junior Marvin, Paulo César Caju, Toquinho e Chico Buarque. As imagens televisivas não mentem: é equipa de deuses.

Antes de começar o jogo, Bob Marley ganha uma camisola 10 do Santos e sorri: “Pelé”, diz. De seguida, avisa todo o mundo que joga em qualquer posição. Um (poli)valente, portanto. No final, um claro 3-0. Golos de quem? Chico. Lá está, o homem é bom de bola. E de música. E de muitos atributos mais.

Muito por culpa do seu temperamento jovial, tem uma habilidade incomum para criar histórias e imaginar personagens. Exemplo: nos anos 90, no Uruguai, um motorista de táxi reconhece-o, Chico desmarca-se como se fosse um extremo. Diz que é filho de Manga, um guarda-redes brasileiro caído em desgraça no Mundial-66, após sofrer um golo de cabeça do português Simões na derrota por 3-1. No Brasil, há quem seja apanhado de surpresa pelos dribles de Chico. Em Colatina, no Espírito Santo, ouve de uma pessoa “, conheço o senhor. É da TV, ?” Chico nem pensa duas vezes, “Sou o novo técnico do Colatina”, que luta para sair da 3.ª Divisão. No interior paulista, finge-se de sul-africano na recepção de um hotel. O senhor do lado de lá não acredita, esboça um sorriso e Chico começa a falar um dialecto diferente, inventado por ele na hora.

No auge da Ditadura Militar no Brasil, cria o pseudónimo Julinho da Adelaide para fazer frente ao regime e chega a dar entrevista para o jornal “Última Hora”. Uma outra vez, veste-se de motoboy, um dos muitos milhares a circular em São Paulo de um lado para o outro a entregar tudo e mais alguma coisa. A sua ideia é atravessar a cidade incógnito para dar flores de aniversário a uma amiga. Missão cumprida, e até ganha gorjeta. Com capacete também eu, olha olha.

Da sua cabeça sai um país chamado Tita, onde “as pessoas se expressavam numa língua monocórdia em que as sílabas tinham o mesmo peso”. Ou seja, Teresa vira Térésá. Tem a mania de inventar cidades e ler mapas. Daí que seja o autor de Budapeste sem nunca ter ido à capital húngara. E à capital portuguesa? Alto lá e para o baile. Chico aterra em Lisboa pela primeira vez em Abril 1969 e vai ao Estádio da Luz no pré-revolucionário dia 25, com Eusébio. Quando lhe pedem para vestir a camisa do Benfica, a resposta é automática: ‘Se vou ser prior, tenho que rezar’. Veste o 10 de Eusébio e aguarda a chegada do verdadeiro dono desse número. O diálogo entre os dois, audível para a comunicação social, é curto. ‘Eu com a bola, você com o violão. A ver que resulta’. Chico em grande.

Eusébio com Amália Rodrigues, os dois grandes ícones nacionais do mundo do futebol e da música

Antes de ir para os ensaios no Teatro Villaret, Chico responde aos jornalistas.

Chico, você gosta de futebol?
Muito. Sempre que posso, assisto aos desafios. Gosto de ir ver o meu clube Fluminense.
Em Portugal vai assistir a algum desafio?
Impossível. Há matinée. Eu bem gostaria. Mas em Roma, para onde sigo, vou com certeza. Embora não goste de futebol italiano.
Porquê?
Aquela defesa trancada. É verdade que eles têm goleiros excepcionais, mas eu gosto de futebol com golos, com gente que atire ao arco.
Como Pelé? Crê que ele voltará a ser o mesmo?
Pelé é Pelé. Não tenha ilusões. Ele está bem. O que se passa é que quando o rei faz uma partida mais modesta, toda a gente fala em decadência. Mas ele só tem 29 anos. Daqui a três anos então talvez se possa falar nisso. Agora não.
E Eusébio?
Só o vi na televisão mas tenho uma grande admiração por ele, como também por toda a equipa do Benfica. São grandes craques.

À saída, Chico despede-se de Eusébio. E ainda de Coluna e do compatriota Otto Glória, meio tímidos na presença de um músico já consagrado pela profundidade das letras. De raspão, pergunta-lhes se vão ao concerto desse domingo, dia 26. “Estamos em estágio, jogo importante de Campeonato’, diz Eusébio. Verdade, é a última jornada. Se o Benfica ganha em Tomar, é tricampeão. Dito e feito. Acaba 0-4, golos de Eusébio, José Augusto, Simões e Faustino (própria baliza). Eusébio só vai à matinée do Chico na terça-feira, horas antes de seguir viagem para Pousada de Saramagos, local de estágio da selecção portuguesa para o jogo com a Grécia, de qualificação para o Mundial-70, ganho pelo Brasil de Pelé. E também de Francisco Buarque de Hollanda.