A Itália, sendo uma nação antiga, é um Estado recente. Ainda que desde Dante, Petrarca e Maquiavel possa falar-se numa língua, numa cultura e numa identidade italianas, a estatalidade só lhe chegaria em 1861, quando o Rei Vittorio Emanuele II da Sardenha unificou a península e se intitulou rei de Itália. Assim, foi só no século XIX que o Estado italiano, a monarquia dos Saboia e a Itália independente se consolidaram, encontrando as suas raízes culturais nas óperas de Verdi e nos romances de Alessandro Manzoni. Mas tal como a Alemanha e como quase todos os Estados da Europa e das Américas a Itália far-se-ia sobretudo na guerra e pela guerra.
A Itália unida tentou desde logo participar na partilha de África mas teve um pesado insucesso militar quando, num dos poucos desastres de forças europeias coloniais perante tropas locais, a expedição do general Baratieri, em Aduá, foi vencida pelos etíopes de Menelik II.
No princípio do século XX, há em Itália um vigoroso movimento cultural que manifesta uma identidade rica e modernizante. Il Leonardo, de Papini e Prezzolini, Lacerba, de Papini e Ardengo Sofici, ou La Voce são algumas publicações da chamada “idade das revistas”; e Filippo Tommaso Marinetti, do Movimento Futurista, publica em Fevereiro de 1909 um Manifesto que iria desencadear muitas outras proclamações do género, da Rússia aos Estados Unidos e da Inglaterra a Portugal.
Mussolini: de socialista a fascista
A Grande Guerra vem surpreender e perturbar um dirigente socialista italiano, Benito Mussolini, homem da esquerda do Partido Socialista e director do jornal Avanti. Nas vésperas Grande Guerra, a Itália estava numa situação política e diplomática especialíssima: fazia parte da Tripla Aliança, com os Impérios Centrais da Alemanha e a Áustria, mas, para os nacionalistas italianos, o inimigo histórico era a Áustria dos Habsburgo.
Ainda que, em Itália, o intervencionismo reunisse gente da direita, do centro e da esquerda, o Partido Socialista Italiano era pela neutralidade. Por isso o socialista revolucionário Benito Mussolini, ao passar a integrar o bloco intervencionista, foi expulso do Partido.
Mussolini alistou-se então como voluntário, foi ferido e experimentou o que muitos europeus de todas as fés e quadrantes experimentaram com a guerra – o fim de uma época, o fim dos seus mestres e referências e o nascer de um tempo novo.
Com outros da sua geração, vai fundar, em Milão, no dia 23 de Março de 1919, os Fasci di Combatimento. Da reunião sai um programa que é muito fruto do pensamento e da acção do núcleo fundador, onde há ex-socialistas e sindicalistas revolucionários, futuristas, ou seja, modernistas reaccionários, e também arditi, os ex-combatentes das forças especiais. À luz dos critérios pré-guerra, o programa era um cocktail contraditório: nacionalista, socialista (defendia a nacionalização dos bancos e a expropriação dos latifúndios), democrático (era pelo direito de voto universal, incluindo as mulheres, para os maiores de 18 anos) e jacobino (queria a nacionalização dos bens das congregações religiosas).
Este programa vai evoluir e modificar-se, em função das circunstâncias e dos aderentes. O “fascismo de esquerda”, o primeiro, o milanês, vai alterar-se com a adesão dos agricultores do Norte e da Emília Romanha, perante o risco de ocupação das suas propriedades. O chamado “fascismo agrário” cresceu muito graças aos agricultores que, receosos da ocupação por militantes de esquerda, apelavam aos Squadristi fascistas.
Mussolini procurou sempre ser o árbitro e o mediador entre a esquerda e a direita fascistas. A sua estratégia de manter uma força de milícias armadas, os Squadristi, que protegia os comícios e as sedes do partido e que atacava as sedes socialistas e os jornais de esquerda, e de, ao mesmo tempo, concorrer a eleições e manter um grupo parlamentar, mostra bem essa sua preocupação táctica.
Não era uma estratégia original, já que o Partido Socialista actuava da mesma forma. No fim da guerra, com a revolução dos Bolcheviques na Rússia, a opção pela violência coexistia com o legalismo eleitoral, com os socialistas a obterem 1. 840 000 votos e 156 deputados num parlamento de 508. Nesta conjuntura, a componente maximalista tomava a dianteira e os socialistas italianos lançavam-se na empresa de “copiar a Rússia” com uma retórica radical, pontuada por clichés marxistas, que anunciava a “crise inevitável e próxima do regime capitalista” que “nada nem ninguém podia salvar”.
Para Ângelo Tasca, companheiro de Gramsci na revista Ordine Nuovo, Mussolini joga com o “nacionalismo exasperado” e as “reivindicações sociais radicais”, isto é, com a Itália da “vitória traída” e a Itália “nação proletária”, vítima das “nações plutocráticas”, como a França e a Inglaterra.
Mil Novecentos e Vinte abre com greves maciças na Indústria e com lutas sociais no campo, o que leva os patrões e as classes médias a preparar a resistência às ocupações. Mussolini está a integrar o “bloco anti-socialista”, articulado pelo primeiro-ministro Giolitti, com o apoio do Vaticano. Por essa altura (entre o Verão de 1920 e o princípio de 1921) o Duce está a multiplicar os “fascios”, que passam de 108 a cerca de mil.
É a guerra de classes, a guerra civil de baixa intensidade; mas, ao contrário do que acontecera na Rússia, os vencedores não iriam ser os “vermelhos”, mas os “negros”.
Os fascistas e os Squadristi têm aqui um papel fundamental: apesar do mau estado das estradas, criam um sistema de mobilização e coordenação intercidades que multiplica a força das expedições punitivas e defensivas na Itália do Norte e do Centro, contando com a simpatia discreta do Exército; enquanto a burguesia, assediada e amedrontada pelo “perigo comunista”, passa da desconfiança à neutralidade colaborante.
Por esta altura, o Governo liquida o caso de Fiume e Mussolini deixa cair D’Annunzio, que “libertara” a cidade do Adriático. Em Livorno, em Janeiro de 21, no XVII Congresso do Partido Socialista Italiano, os comunistas abrem a secessão. Os socialistas mantêm-se fortes no Parlamento, onde os católicos populares de Don Sturzzo também têm uma boa representação.
Mussolini vai então defender uma nova aliança para uma nova maioria: “uma nova e grande coligação […] das três forças verdadeiramente eficazes na vida do país” – os socialistas, os católicos populares e os fascistas. É nesse espírito que assina um “pacto de pacificação” com os socialistas, em Agosto de 1921. As forças conservadoras voltam-se contra ele, bem como os sectores esquadristas mais radicais – do Vale do Pó, da Toscânia, de Veneza Júlia, de Bolonha –, que também se insurgem contra o acordo.
É Dino Grandi quem corporiza esta linha crítica dos esquadristas. Nesta altura, os Fasci já passavam dos 300 mil filiados. No Congresso de Roma dá-se a pacificação interna e os Fasci são abolidos, passando a Partido Nacional Fascista (PNF).
O PNF organiza-se rapidamente em milícia nacional, numa rede de ocupação territorial que conta com a cumplicidade de quadros militares. Os governos sucedem-se, com as esquerdas incapazes de chegar a um acordo entre socialistas, comunistas e populares. Os comunistas italianos hesitam, tal como os seus correligionários alemães hesitariam na véspera da conquista do poder por Hitler: entre dois males, qual seria o pior, o fascismo ou a “democracia burguesa”?
No Verão de 22, o esquadrismo fascista desenvolve operações violentas em Cremona, Novara e Ravena. Em Ravena, na comemoração do sexto centenário da morte de Dante, incendeiam sedes partidárias de esquerda.
Mussolini, numa série de discursos em Agosto e Setembro de 22, trata de tranquilizar as instituições, ao mesmo tempo que conversa com dirigentes conservadores e liberais, para tentar um governo de coligação. E propõe uma política externa não-sujeita à Sociedade das Nações e à Inglaterra, que vê como o poder imperialista por excelência.
A marcha dos condottieri
A Marcha sobre Roma nasce neste clima. É decidida em Milão, em meados de Outubro, torna-se pública no encontro de Nápoles (24-25 de Outubro) e inicia-se na noite de 27 para 28 de Outubro. Um Quadrunvirato (o fascismo, à semelhança do bonapartismo, retomava as hierarquias romanas), formado por Italo Balbo, Emilio De Bono, Cesare Maria De Vecchi e Michele Bianchi, assume a direcção do Partido e das operações. Os fascistas começam a ocupar centros políticos e estratégicos por toda a Itália, de prefeituras administrativas a estações ferroviárias.
Em Roma, o governo liberal de Luigi Facta demite-se e declara o estado de sítio – que o Rei Vittorio Emmanuele se recusa a assinar.
Entretanto, Mussolini está em Milão. No dia 28, à tarde, o Rei chama o conservador Antonio Salandra para formar um governo de direita com os fascistas. Salandra consulta Mussolini, que lhe responde que só integrará o governo como Presidente do Conselho de Ministros.
A 29 de manhã, Mussolini recebe um telegrama do general Cittadini que, em nome do Rei, o convida a vir a Roma para formar governo. Parte de Milão ao fim da tarde e chega a Roma na manhã de 30, Domingo. À tarde, às 19h20, entra no Quirinale para apresentar ao Rei o seu Ministério.
É um governo de coligação parecido com os anteriores: nele entram, além de Mussolini, três fascistas, um nacionalista, dois populares, dois democratas, um social-democrata, um liberal, um independente (Emilio Gentile) e dois militares.
Na sua manobra para conquistar o poder, Mussolini segue o conselho maquiavélico, combinando a força do leão com a astúcia da raposa: numa Itália traumatizada pela “vitória traída”, com as classes médias preocupadas e assustadas perante a ameaça comunista patente no Bienio Rosso, os fascistas surgiam como alternativa.
Sem abandonar na retórica dos princípios a ambição do solidarismo social através do corporativismo, o fascismo fora perdendo no terreno a sua componente “de esquerda” e, sobretudo a partir do “fascismo agrário” e do esquadrismo, passara a integrar a direita sociológica.
Ao mesmo tempo, Mussolini tecera aquilo a que o historiador Francesco Perfetti, um discípulo de Renzo De Felice, chamaria “uma teia de aranha” político-partidária com os principais dirigentes conservadores e liberais – Giolitti, Orlando, Salandra, Facta — e o nacionalista Federzoni. Quando Facta quis declarar o estado de sítio, o rei recusou-se a fazê-lo, sabendo das simpatias da jovem oficialidade pelos fascistas e por Mussolini, e tendo, através de Federzoni, a garantia de que não tocariam na Monarquia.
Nessa medida, a marcha dos fascistas sobre a capital, depois exaltada como decisiva, foi mais uma demonstração de força destinada a cobrir um golpe de Estado indolor do que um assalto violento ao poder. Um assalto em nada comparável à tomada de poder pelos bolcheviques e às perdas humanas causadas pela revolução e pela guerra civil na Rússia. Perdas que Antony Beevor, no seu recente Russia – Revolution and Civil War 1917-1921, estima em 12 milhões de vidas.