Alexis de Tocqueville, um conservador liberal com um fundo de pessimismo antropológico e também por isso atento às derivas perversas dos grandes ideais, estabeleceu a genealogia das ideias democráticas e chegou ao conceito aparentemente contraditório de “despotismo democrático”.
Fê-lo primeiro em L’Ancien Régime et la Révolution, analisando a filosofia das Luzes e os seus protagonistas. Os filósofos franceses da Ilustração e da Enciclopédia eram racionalistas que trabalhavam sobre uma Antropologia abstracta e, por isso, facilmente revolucionária. Enquanto em Inglaterra os pensadores contavam já com a experiência de uma sociedade que cortara a cabeça ao Rei, que passara, entre as Guerras Civis, por um processo revolucionário e que vivera a ditadura de Cromwell, a Restauração e a Glorious Revolution, em França, os filósofos discorriam nos salões das duquesas sobre índios e chineses idealizados, deliciosamente primordiais, construindo admiráveis utopias e divagando sobre sociedades tão imaginárias como perfeitas.
Depois, passaram a realização dessa sociedade ideal para uma entidade também ideal: o Estado, o Estado moderno, que encarnava colectivamente a vontade geral e popular rousseauniana. E desenharam então esse Estado unitário. Como o Rei Absoluto, Luís XIV, se proclamara “o Estado” (L´État c’est moi”), assim também a “assembleia dos indivíduos” unidos pela “vontade colectiva” se proclamava o soberano absoluto.
Contra o privilégio e a diversidade
E às abstrações políticas dos filósofos, juntaram-se as dos economistas, os fisiocratas, “em cujos escritos – escreve Tocqueville – se reconhece já o espírito revolucionário e democrático que conhecemos tão bem”. Um espírito que, mais do que “odiar alguns privilégios”, odiava “a própria diversidade”.
Assim, para Tocqueville, coubera aos economistas “preencher” a utopia. E é sobre eles e a transformação dos homens através do Estado que escreve em L’Ancien Régime et la Révolution:
O Estado, de acordo com os economistas, não deve apenas governar a nação, deve moldá-la, de maneira certa; é o Estado que deve formar o espírito dos homens, segundo o modelo correcto que previamente definiu. O seu dever é preencher o espírito dos homens com determinadas ideias e dar aos seus corações os sentimentos que considere necessários. Na verdade, o Estado não reconhece limites aos seus direitos, nem fronteiras ao que pode fazer; não quer apenas reformar os homens, quer transformá-los.
A ideia de transformar os homens e de redimir a natureza humana era antiga. Mas se a transformação do Cristianismo é interior, feita por obra da Graça de dentro para fora, a dos iluministas e iluminados fazia-se de fora para dentro, por acção das leis e da força – pela violência, pelo abuso, pelo terror. Foi o que fizeram os revolucionários de 1789 a 1794 e depois nas revoluções soviética e chinesa. E se os elementos indesejáveis – aqueles que Rousseau, outro filósofo dos novos tempos, dizia que teriam de ser obrigados a ser livres – não quisessem mesmo ser “livres” e dessem maus exemplos, exterminavam-se. Era o “despotismo democrático”, ou o despotismo em nome da Democracia, e da Igualdade, e do Progresso, e da Ciência e das Luzes.
Esta variante caiu em desuso e em popularidade. Mas há outra, menos violenta e mais tranquila, que Tocqueville também diagnosticou, em De la Démocracie en Amérique e que está hoje em ascensão: a que nasce em sociedades à partida livres, igualitárias, abertas, em que os cidadãos, ocupados com os seus negócios e actividades, entregam o político (em sentido schmittiano) ao Estado. A um Estado benigno, paternalista, tutelar.
É este Estado que Tocqueville descreve numa passagem assustadora pela sua objectividade e actualidade:
Acima dos cidadãos ergue-se um poder imenso e tutelar, que se encarrega sozinho de garantir a sua felicidade e de zelar pela sua sorte. É um poder absoluto, detalhado, regular, previdente e doce.
O despotismo consentido
Se a primeira modalidade de despotismo democrático nascera do voluntarismo violento dos jacobinos, esta segunda nascia do consentimento acomodado dos povos, que, ora adormecidos pelos trabalhos e pelos lazeres de uma sociedade voltada para o bem-estar e para o consumo, ora amedrontados por perigos reais ou imaginários, esperavam que o Estado benevolente lhes garantisse a tranquilidade e os defendesse.
Com a proclamação dos “direitos e garantias individuais”, e apesar das muitas distorções e abusos a par de uma retórica de “igualdade perante a lei”, esquecemo-nos que a liberdade e as liberdades e as nossas instituições têm raízes em sociedades muito anteriores aos séculos democráticos. Ernst Jünger lembra a este propósito que a inviolabilidade do domicílio, por exemplo, se começou com o páter-famílias e os filhos à entrada de casa, de armas na mão, a defenderem o lar de intrusos. As sociedades de fronteira na América também seriam assim (mas a viagem à América de Tocqueville fora anterior à marcha para o Oeste, daí que a sua experiência de “despotismo democrático” se prendesse com as comunidades americanas agrícolas, sedentárias, mais próximas das nossas).
E é este outro “despotismo democrático” – herdeiro do primeiro, do furioso – que nos ameaça hoje e que hoje vemos reforçado – o da inércia, da resignação, do cansaço, das pequenas facilidades, da cedência cómoda e com pouca discussão ao que nos é “oferecido”. E para que a vida continue sem aparentes sobressaltos de maior, entregamo-nos ao Estado, aos economistas, à Justiça, aos Bancos Centrais, às plataformas electrónicas, como se fossem abstracções geridas por “pessoas de bem” ou por “algoritmos de bem”. E podem não ser. E nem sempre são.
Por isso, entre muitas outras duvidosas marchas em curso, a alegre marcha para a virtualização do dinheiro, a que, passo a passo, vamos cedendo mais ou menos entusiasticamente, devia obrigar-nos a pensar.
A maldição do dinheiro
Em The Curse of Cash (A Maldição do Dinheiro), Kenneth S. Rogoff, que foi economista-chefe do FMI e é professor em Harvard, defende que o dinheiro, o dinheiro vivo, devia acabar, ou ficar-se só por uma presença residual. Para Rogoff, notas, só as de 10 dólares, porque é o dinheiro físico, o dinheiro em circulação, que impede o controlo da inflação pelos Bancos Centrais, que viabiliza toda uma economia subterrânea, que obstaculiza a luta dos governos contra a evasão fiscal e que facilita actividades criminosas, como o tráfico de droga e de pessoas, a corrupção e o crime organizado.
É certo que não nos faltam exemplos próximos e reais, mas, levados por centenas ou milhares de filmes e séries sobre terroristas e traficantes, quando hoje pensamos no “mau dinheiro”, já quase só identificamos o camiliano “demónio do ouro” na efígie tranquila de Benjamin Franklin, repetida em maços de notas de 100 dólares, as célebres notas verdes portadoras de tantas alegrias e de tantas desgraças, devidamente arrumadas em pastas por conspícuos banqueiros ou apressadamente enfiadas em sacos por patibulares mafiosos. E no entanto, por insistência da realidade, o “ouro mau” também já ganhou na ficção uma imagem virtual, com a nervosa transferência bancária em iminente conclusão, qual bomba-relógio à espera da chegada do herói no último minuto. Isto porque se o “ouro” é cada vez mais virtual, o demónio também se vai actualizando.
Mas no princípio o ouro, bom ou mau, era mesmo o ouro. Tanto que o nosso Rei-fundador, em troca do reconhecimento papal e para “maior demonstração de reverência” teve de comprometer-se a depositar anualmente “nas mãos do Arcebispo de Braga” dois Marcos de Oiro. Só então o Papa Alexandre III, na Bula Manifestis Probatum, reconhecendo “estar demonstrado com provas manifestas que, através de esforços bélicos e aguerrido pelejar”, o “caríssimo filho Afonso” tinha “extirpado os inimigos de Cristo”, o confirmaria como Rei e a Portugal como Reino.
Não se pode dizer que fosse uma soma milionária, este tributo. Dois Marcos de Ouro eram 460 gramas de ouro. Afonso propusera quatro Onças, o que não chegaria a 120 gramas. O Pontífice subira o preço, sem abusar muito. Nada a ver com os diabólicos tributos pagos por cá, em democracia plural, a políticos, gestores e facilitadores de negócios.
O ouro e a prata eram então a base dos pagamentos e da economia mundial. O papel-moeda aparecera há muito na China – Marco Polo fala dele no último quartel do século XIII. Segundo Hans Vogel, onde as notas americanas de Dólar têm “In God We Trust”, os imperadores da China tinham “Aqueles que falsificarem este papel-moeda serão decapitados”. Outras terras, outros tempos, outras gentes.
No século XVIII, nos territórios coloniais europeus, apareceram os Ious, uma espécie de papéis de reconhecimento de dívida transacionáveis, promissórias negociáveis no comércio local e válidas para pagamentos vários – símbolo dos sucessivos e progressivos avanços em relação às trocas directas e depois ao ouro, à moeda, às notas de banco convertíveis em ouro, ao valor fiduciário.
Distopias reais
Agora, com o dinheiro vivo emitido pelos Bancos Centrais a multiplicar-se em todo o mundo, advoga-se a supressão do papel-moeda: acabar com o dinheiro vivo é hoje visto por muitos como o apressar do fim de um meio obsoleto, dando aos governos o poder necessário para controlar a actividade económica e uma maior margem de manobra aos Bancos Centrais.
Mas esta marcha para a virtualização, dada como irreversível, levanta problemas e gera polémica. Há quem esteja contra a supressão do dinheiro vivo, sustentando que o dinheiro é a “marca da liberdade” e defendendo o direito à privacidade e à resistência ao controlo do Estado e à devassa da vida financeira não se sabe por que terceiros.
Nestes últimos meses, talvez com o incentivo das medidas de excepção geradas pela Pandemia, tem havido alguma reedição de distopias famosas, sobretudo do 1984, de Orwell. E esta eventual supressão do dinheiro físico não deixa de soar a medida de preparação para um estado totalitário, distópico.
O que seria um Estado – e um Estado alargado aos grandes espaços económico-financeiros da Eurolândia ou dos Estados Unidos – com os governos e os Bancos (e os governantes e os banqueiros) a conhecerem e a controlarem o total das despesas, das receitas, das poupanças, das carências dos cidadãos? O que seria um mundo, o nosso mundo, se, como querem alguns economistas, políticos, banqueiros e empresários do retalho virtual, o dinheiro vivo fosse restringido e abolido?
Em Super Sad True Love Story, publicado em 2010, Gary Shteygarts descreve um mundo governado por superempresas, como a Land O’Lakes G.M. Ford Credit, que é comprada pela China. E, como que unindo os dois “despotismo democráticos” de Tocqueville, a China que aparece no livro é governada pelo Partido Capitalista do Povo Chinês, liderado pelo Banqueiro Central Chinês. A América é governada pelo Partido Bipartidário e, num cenário satírico e brutal, os soldados da Guarda Nacional, regressados de uma fracassada invasão da Venezuela, reprimem as revoltas dos “Indivíduos de Baixo Valor Líquido”. A notação discriminatória é possível (tanto que já está em vigor na China real) precisamente pelo conhecimento informático da exacta situação patrimonial e comportamental de cada cidadão.
Dinheiro vivo – a marca da liberdade
Num estudo de Novembro de 2016, intitulado “Cash, freedom and crime”, Heike Mai, economista do Deutsche Bank, chega a algumas a algumas conclusões importantes: acabar com a moeda e as notas de banco não elimina o crime, já que, embora com custos de transação mais altos, cada vez haverá formas mais imaginativas de lavar e transferir o produto de actividades criminosas ou os fundos destinados à corrupção. Na Suécia, que reduziu o dinheiro vivo ao mínimo, a fraude subsiste e tem mesmo vindo a aumentar. E o dinheiro vivo pode também funcionar como indício: na Operação Marquês, acrescentaríamos, com a sua intrincada rede de transferências, a circulação e os pedidos de “fotocópias” ou “daquilo que eu gosto” podem por ser o rasto decisivo de toda a virtual virtuosidade criminal.
Mas é a conclusão de Heike Mai que aqui me importa:
O dinheiro assegura a protecção de dados e é por isso uma garantia das liberdades civis nos casos em que a Administração pública abusa dos seus poderes.
No estudo há também estatísticas interessantes: a relação economia paralela-dinheiro vivo não é directa nem forçosa. A Alemanha e a Áustria são países cash-intensive e têm uma pequena economia paralela; a Suécia, com uma economia paralela média, quase não tem cash; e a Itália, a Espanha e a Grécia, com grandes economias paralelas, usam muito o dinheiro vivo. Heike Mai também avisa que não se deve equiparar levianamente a economia paralela à economia criminosa, já que a economia paralela (shadow economy) “se refere, não só a actividades ilegais, mas também a actividades legais não contabilizadas”, geralmente para escapar à híper- tributação ou à tributação abusiva, sempre que os cidadãos consideram que o Estado não é “pessoa de bem” ou foi tomado de assalto e não cumpre a sua parte no contrato social.
De qualquer modo, a parcial, progressiva ou forçada substituição do dinheiro por pagamentos electrónicos, detectáveis e identificáveis não deixará nunca de ser um atentado às liberdades. Na China, campeã da corrida à moeda virtual, há uma permanente pressão para o uso de meios electrónicos de pagamento e para a recusa de pagamentos em cash.
Os bem-intencionados e os resignados
As formas modernas de despotismo começam na linguagem e as políticas monetárias seguirão a mesma receita: a “população contribuinte” é aparentemente uma massa indistinta, mas há ficheiros individuais e detalhados sobre cada um dos seus membros, dados prontos a serem puxados e cruzados em caso de necessidade – e explorados através de sistemas de fiscalidade estatal ou de cartelização empresarial.
O soberano que governa em nome do colectivo neste “despotismo democrático”, pode ser, como intuiu Tocqueville, suave ou até sedutor. Mas, agindo sempre segundo uma retórica de bem-fazer, vai-nos retirando tudo: agora poderá ser o papel-moeda, sonegado à “população contribuinte” para seu próprio bem – para combater o crime organizado e controlar movimentos.
E assim nos vão confiscando tudo, até faixas de rodagem, para abrir espaço a uma minoria de ciclistas que parece não querer dar ao pedal. E tudo em nome de um país virtualmente mais sustentável, inclusivo e verde, graças aos (desviáveis) “dinheiros da Europa”, mas realmente cada vez mais insustentável, mais pobre, mais faminto, mais engarrafado.
E o mais grave, talvez, é alguns estarem convencidos que trabalham para o bem comum. Como os jacobinos de 1793, os bolcheviques de 1917 e até alguns Guardas Vermelhos de 1966. Mas, mais grave ainda, é muitos de nós não estarmos ainda convencidos de que as consequências deste outro despotismo, que vamos alimentando inconscientemente e em suaves prestações diárias, prometem ser mais negras e letais do que as das revoluções mais sangrentas.