Há que tentar introduzir alguma factualidade histórica para que não acabemos vítimas das narrativas que descrevem a actual crise da democracia liberal europeia como produto de uma série de conspirações reaccionárias ou “fascistas”, ou até de uma grande conspiração das direitas, contra os “direitos humanos” e a “normalidade democrática”.

O regresso dos fascismos e dos regimes autoritários do século passado será pelo menos tão irreal como o regresso dos comunismos e dos totalitarismos de esquerda de então, mas tal não tem impedido alguns “democratas vigilantes” de entreverem o “regresso do fascismo” nos movimentos da nova direita radical ou populista ou até nas reivindicações e soluções governativas da direita conservadora.

Do outro lado está, evidentemente, não a ofensiva internacionalista e hiperindividualista dos novos “sonhos da razão” das modernas esquerdas radicais, a censura ou cancelamento de tudo o que os contradiga, ou sequer os malefícios do liberalismo globalizante e o abandono do povo ou da “gente vulgar” pelas “elites”, mas tão só a cândida e civilizada defesa dos “direitos humanos” e da “normalidade democrática” perante um mal vindo do nada. Porque, para os antifascistas encartados, “o fascismo e os fascistas” surgem sempre do nada para surpreender o bem e os bons.

Mas se há coisas que não mudam – como, nas esquerdas, a pose de superioridade moral, a reivindicação do exclusivo da generosidade, da humanidade e da modernidade, a importação servil de agendas externas e o maniqueísmo –, outras há que vão mudando. Ou que mudaram o suficiente para que possa falar-se de um simples “regresso” do que quer que seja.

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Comunismo, fascismo, nacionalismo conservador e autoritário eram todos críticos do liberalismo democrático e apresentavam soluções institucionais alternativas à democracia competitiva. Agora, nenhum dos polos, por mais extremado, as apresenta.  As direitas, porque tendem a ter do seu lado o crescente descontentamento do povo e o voto popular; as esquerdas, porque encontraram no hiperliberalismo democrático e nas suas elites políticas, académicas, mediáticas, sociais e económicas excelentes aliados para a sua magistratura de influência e de pressão legislativa global. E se já tinham do seu lado “a verdade”, agora têm o dogma de fé e correspondentes seitas fanáticas, com iconoclastas e inquisidores e novas formas de apedrejamento, de aplicação de alcatrão e penas, de denúncia e de confissão pública.

O “fantasma do comunismo”

Os movimentos fascistas e fascizantes europeus e os regimes de autoritarismo nacional militares e civis do século XX, também não surgiram do nada para surpreenderem o bem e os bons. Responderam, não só ao “mal-estar da civilização” e à crise do liberalismo, mas sobretudo e muito concretamente à Revolução Soviética e ao “perigo comunista”.

Que era um perigo real. Lenine e os bolcheviques, depois do golpe ousado de Outubro, ganharam a guerra civil, recorrendo a uma violência e a um terror sem limites. Os comunistas tentaram outras revoluções na Europa –   a fracassada dos espartaquistas em Berlim, as brevemente triunfantes da Baviera e da Hungria; e, em Itália, o ensaio de assalto ao poder dos socialistas e comunistas, a que os fascistas de Mussolini (o Partido fora fundado em 23 de Março de 1919) responderam com eficácia.

A conhecida e reconhecida crise do constitucionalismo liberal, a seguir à Grande Guerra, levaria ao triunfo de regimes ditatoriais e autoritários na Europa Ocidental e Central – e à ascensão de Hitler ao poder, na principal nação industrial europeia, em Janeiro de 1933. Depois, em 1936, na Guerra Civil de Espanha, defrontavam-se militarmente os radicalismos de esquerda e de direita.

Na época, havia, à direita, na direita nacionalista e conservadora, um forte pensamento antidemocrático. Ou, melhor, seguindo Zeev Sternhell, um pensamento anti-Luzes, crítico do núcleo duro de ideais da Ilustração – Progresso, Ciência, Razão, Democracia. Esta crítica fora formulada pela contra-revolução, de de Maistre e Burke a Donoso Cortés, mas também pela ala conservadora do liberalismo, com as reflexões de Alexis de Tocqueville. E tivera, na ficção e na filosofia, Dostoiévski e Nietzsche. Havia todo um clima cultural a que movimentos do tradicionalismo activista, como a Action Française, dariam forma e presença política.

Os ideais das Luzes tinham uma tradução nas utopias a que Octavio Paz chamaria “sonhos da razão”. Sonhos com algumas experiências práticas na América do século XIX e depois, já no século XX, amplamente concretizados em versão política e estatal nos realíssimos pesadelos da União Soviética de Estaline e da China de Mao. Não haverá hoje muitos negacionistas dos seus horrores, embora se repita a ladainha de que, ao contrário do que acontecia à direita, o ideal, o fim, era ali bom e eram generosos os seus executores, embora alguns pudessem ter-se transviado.

De qualquer forma, como a Primeira República fora imagem da democracia em Portugal ou “à portuguesa”, as duras e duradouras experiências de socialismo real, a realização dos “sonhos da razão” na União Soviética e seus satélites e na República Popular da China, foram a eloquente imagem do comunismo.

O comunismo não era, pois, um “fantasma”; um “fantasma” que Salazar teria inventado ou de que aqui “o fascismo” se servia ou para sufocar as liberdades públicas.  O “fantasma do comunismo”, a realização do sonho comunista, era um realíssimo pesadelo.  E um pesadelo em expansão.

A minha geração foi uma geração marcada pela Guerra Fria dos anos cinquenta, pelo fim dos impérios europeus e pela Guerra de África. Não tínhamos especial simpatia pelo regime salazarista (nem pela Oposição Democrática) mas éramos sensíveis ao perigo comunista, que, nesse tempo, esmagava os levantamentos operários e populares em Berlim e Budapeste. O comunismo era uma ameaça séria e os comunistas não perdoavam a Franco – e, por extensão, a Salazar – a derrota em Espanha.

E, em Espanha, a escolha não fora entre uns democratas liberais simpáticos e uns tenebrosos militares fascistas, apoiados por Mussolini e Hitler: fora entre uma coligação de direitas chefiado por Franco e os socialistas, anarquistas e comunistas que, a partir de Fevereiro de 1936, tinham começado a queimar igrejas e a matar “fascistas”. E que depois fuzilariam mais de sete mil padres, bispos, freiras e religiosos.  Tudo para corrigir o mundo e instaurar o melhor dos mundos, matando e oprimindo de passagem, acendendo um verdadeiro Inferno na Terra cheio de boas intenções, é certo, mas com uma retórica de sonho e em nome de um imorredoiro sonho… Já os outros, que também mataram, eram só maus, um perigo que inexplicavelmente irrompera entre gente encantadora que mais não fazia do que bater-se pelas amplas liberdades democráticas.

O que fica do que passa

É uma tendência e uma retórica que os “antifascistas” de hoje mantêm. E sem a grandeza, o risco e a entrega “ao povo e à causa” que tinham os seus antecessores.

Os antifascistas de hoje estão instalados no poder e, para o manterem, investem em startups de “sonhos da razão” cada vez mais sortidos e irrazoáveis, como quem manipula, ou pensa que manipula, crianças mimadas num hipermercado global.  Crianças que insultam quem os contraria e que querem tudo: consumir todos os “géneros”, raças e espécies, desarrumar e deitar fora credos, tradições e realidades, espatifar fronteiras e deitar abaixo barreiras para poderem brincar aos desportos radicais. E as esquerdas moderadas no poder – para quem esta delirante Agenda é secundária – vão-lhes dando tudo o que querem só para não terem de as ouvir ou para que não façam birras no meio da rua e, sobretudo, para que lhes deem os seus votos nas “coisas que realmente importam”. E as “coisas que realmente importam” para estas esquerdas moderadas (e para algumas direitas) são a manutenção do poder e “o andamento da economia” – como se as agendas sociais e culturais não pudessem comprometer as económicas e determinar a disrupção ou a continuidade das sociedades.   

O que é que se repete com diferenças e o que é que é radicalmente diferente nesta evolução histórico-ideológica direita-esquerda, nas reacções que pairam hoje sobre o Ocidente euro-americano – todo ele institucionalmente democrático e liberal?

A primeira reacção, à direita, é contra o globalismo e o liberalismo económico pós-Guerra Fria, que gerou um enorme descontentamento nas classes trabalhadoras e médias, e que se manifesta, eleitoralmente, pelo nacionalismo populista, movimento que, nesse lado popular, e até cesarista, terá algumas semelhanças com os fascismos de há cem anos. No entanto, ao contrário do fascismo, não apresenta uma teoria alternativa à democracia competitiva para legitimação do poder, nem tem a ambição reformista, real ou retórica, de criar um “homem novo”. E é também, ou talvez sobretudo, uma reacção conservadora à imigração descontrolada e não-integrada, ao peso e aos critérios do Estado-providência e aos longínquos e alheados ditames das organizações supranacionais, à memória da opressão comunista e à presente ameaça das novas esquerdas e de tudo o que trazem por arrasto.

A segunda, a reacção à esquerda, reage à derrocada dos regimes comunistas e ao fim de um longo namoro com o “povo trabalhador”. Como que imunes às consequências históricas dos experimentalismos humanos e sociais do nazismo e do comunismo, estas esquerdas marcham burguesmente e em passo acelerado rumo à transformação da natureza humana, alheadas da “gente vulgar” e do “povo trabalhador” e centradas já só em minorias mais vistosas, mobilizáveis e vitimizáveis. Têm uma raiz hiperliberal e hiperindividualista e pretendem trabalhar por dentro as sociedades ocidentais, de modo a “libertá-las” de toda a pertença enraizada e de proximidade e de toda continuidade – religião, comunidade, família, nação ou a própria natureza das coisas, como a determinação fisiológica. E esta tentativa de disrupção faz-se em nome de novos “direitos humanos”.

Liberdade de escolha

Será a defesa de uma identidade nacional, de um conceito de comunidade e de família, de uma concepção do passado e da História, da liberdade de pensamento, expressão e credo e da protecção da vida e dos mais frágeis, o “regresso do fascismo”?  Será a mera dicotomia globalismo/ nacionalismo, utopia/realismo “perigosamente antidemocrática”?

Assumir a História, sem exaltações encantadas, mas também sem rebaixamentos culposos, sem a reduzir à “Cruz e Espada”, mas também sem a limitar ao esclavagismo; ter um olhar crítico, informado e contextual sobre o tempo e os homens do passado, mas também sobre os contemporâneos, não é o regresso de coisa nenhuma.  É a recusa da amálgama internacionalista, que ignora contextos, experiências, especificidades e realidades históricas e próximas; a recusa do fanatismo, da ignorância, da intolerância, da insensibilidade às pobrezas e às riquezas próprias; a resistência à imposição de um pensamento único, à manipulação e ao experimentalismo suicida – e ao alheamento “moderado” e acomodado que os vão permitindo. É a luta pelos valores permanentes e essenciais, os que importa salvaguardar dentro das formas políticas que, de acordo com o espírito do tempo, forem as mais convenientes e exequíveis. Sem procissões fúnebres a passados imaginários e sem hagiografias ou diabolizações, num mundo que, ao contrário do que nos querem fazer crer, não é nem nunca foi a preto e branco.