1 Sim, três vezes sim: é melhor, mil vezes melhor, estar na UE – titubeante, péssima praticante de integração política, incapaz de visão e decisão, desconhecedora do rasgo — do que não estar. Do que não ser hoje, em 2020, um dos vinte e sete, pobres de nós, se o não fôssemos. Mas caramba. Olha-se para Merkel como único porto de abrigo, expondo assim à luz do dia que a santíssima trindade da visão, da decisão e da vontade políticas — indispensável santíssima trindade – só a chanceler alemã, também ela cansada, a detém. O resto é fôlego curto e embaraçante falta de estratégia mas que dizer desta vez da incapacidade e da desunião manifestadas? O quase miserável estado da “Europa” — hoje com uma pandemia desconhecida às costas e a breve trecho com fome – reclamaria projecto, golpe de asa e critério pronto e comum. Nunca mais do mesmo, como ocorreu. Mal: 2020 não é o mesmo que 2008. Pior: em três dos mais amargos momentos da vida EU, duríssimos momentos — 2008, a crise dos refugiados e a actual pandemia – a Europa não respondeu. Não sabe. Ainda pior: não pareça haver por lá alguém que saiba.
2 O estado das coisas reclamaria também naturalmente outra compostura mas seria pedir demais. O raciocínio do governante holandês — que agiu por motivos internos porque para isso foi eleito — não abona de todo em favor dele, quer política, quer pessoalmente. Não estou porém certa de que a melhor resposta tenha sido atirar-lhe à cara com um “repugnante” que, além de não ter surtido efeito, teve o condão de nos reeditar o mau ímpeto de António Costa para explodir em (inesquecíveis) frases infelizes. Nem certa de que as lágrimas vertidas na Holanda de desagravo pelo seu titular das Finanças, fossem sinceras ou sequer convincentes. Um flagelo da urgência e premência desta pandemia merece outra resposta e outro respeito que não adjectivos ácidos ou lágrimas de crocodilo.
Não é fácil conviver com a acabrunhante impressão de estarmos mal entregues.
3 Intramuros também não é fácil conviver com a mesma impressão de não estarmos bem entregues. Podia ser pior? Podia, claro, pode sempre, é porém fraco consolo. Mas se o “quotidiano” conhece tropeções e sofre de contradições — falta de testes, luvas, máscaras, desinfectante; números contraditórios, informação descoordenada – é o amanhã que agora assusta: quando é que nos tiram daqui? E como? E para fazer o quê e onde? E com que riscos? E como ousam “avisar” secamente e sem mais que uma considerável parte da população chamada “os idosos” ficará trancada em casa até Dezembro?
Como contam resolver os problemas — domésticos, financeiros, psicológicos, nervosos, mentais – que já se somam devido à residência fixa? Seja: as “autoridades” estão aflitas, não sabem, titubeiam, hesitam, não há certezas, as recomendações internas e externas não coincidem. Mas — pequeno aviso ás navegações — não utilizem o confinamento como salvífica solução, não nos deixem muito mais tempo à espera para ganharem o tempo que precisam para saber o que fazer. O confinamento não pode passar de etapa pontual a boia de salvação. Ou estratagema.
O futuro exigentíssimo que nos espera nunca se compadecerá com o que – podendo tê-lo sido — não foi previsto, nem pensado, nem evitado. Não pode haver só vírus, mesmo havendo o vírus. Falta o resto que é o que iremos viver dentro de semanas, ou meses. Quem atende a esse considerabilíssimo “resto”?
A verdade é que intramuros sabe-se dos desacordos entre “eles”, adivinha-se a incerteza, pressente-se a insegurança. Idealmente ninguém estará bem entregue e não há adivinhos, nem mágicos. Mas se não se pode pedir demais, pode pedir-se-lhes que ao menos abreviem o espectáculo da contradição ou da deficiente informação. Ou que por exemplo gastem menos prosápia. O Presidente da República sinaliza-nos incansavelmente que o melhor está a ser feito, que “nós portugueses” somos os melhores — em quê? — e que conseguiremos – o quê? Concordando obviamente que ele não pode exibir pessimismo, não se lhe pedia tanto afã no optimismo. Nem tantas certezas sem chão debaixo dos pés como as que ouço ao Primeiro Ministro quando parece não duvidar que em cada casa do país haja computadores. Ou que os seus habitantes disponham todos eles da agilidade indispensável para lidar com a complexa empreitada do ensino à distancia.
4 Nunca a política nos desiludirá de vez afinal, tão capaz ela é de espanto e surpresa. De há umas quantas semanas para cá, o saber, a informação, a autoridade sobre este vírus — as suas notícias, o seu ritmo, a sua evolução — transferiram-se dos seus fóruns habituais para um estúdio de televisão. Dia após dia, quase como quem não quer a coisa, os speakers oficiais foram sendo removidos para uma espécie de limbo, substituídos pela invulgar performance de um invulgar protagonista. Espantosa transferência, reconheça-se. Falo de Paulo Portas e do seu apontamento diário — “Estado de Emergência” — no jornal da noite da TVI. Falo e falo bem. Serei certamente das pessoas mais insuspeitas para o fazer o que me confere automaticamente o dobro da legitimidade: o novo protagonista nunca me agradou politicamente, nunca fui do seu círculo, não era devota de O Independente. Apesar do brilho da inteligência e do fulgor da oratória, afligiam-me tantas peles, jogos e estados de alma. E no entanto… eis hoje um político “á part intière”, vivido, aprendido e amadurecido, que guardou porém intacto o talento congénito: neste caso, “ocupando” todo o espaço deixado semi-vazio pela deficiente informação oficial sobre a Covid-19, e depois antecipando-se em conselhos e avisos e, assim, antecipando o futuro. Paulo Portas fá-lo, executando – ao vivo, em directo e in loco – uma prestação onde passou a ser obrigatório reter a seriedade da informação transmitida; o trabalho de casa feito para a tornar possível; a autoridade com que, por entre palavras, mapas e gráficos ele nos “conta” as viagens planetárias do vírus ou disserta sobre o que aí poderá vir. E, last but not least, uma invejável justeza de tom — que nunca exclui a severidade — no modo como critica, avisa ou alerta, o governo, políticos, responsáveis da Saúde. Só uma coisa me intriga: saberá Paulo Portas quanto a política lhe vai cobrar por isto? Saberá ele onde se meteu?
5 Já há rosas. São as primeiras rosas, poderoso anúncio.
“Escrever é uma ponte que estendo ao meu próximo através da palavra” disse um dia Lygia Fagundes Telles. Anunciar rosas pela palavra é o irresistível carpinteirar dessa ponte. Como o poder anunciar que ainda há camélias ou que estão cada vez mais altas as ondas amareladas de malmequeres junto aos buxos.
A geografia amável deste território parece de cada vez subitamente ampliada ao nosso olhar porque deixou de haver intermediários entre nós e o que olhamos. No vazio de vida humana, o que se olha é o que se vê, agora com luminosa nitidez: como a tão arrebatoramente bela-perfeita? — Basílica de S. Pedro nesta Semana Santa. Uma deslumbrante harmonia no correr dos seus altares, na cor do mármore, nos despojados ornamentos, na vazia nave central, nos dourados e na pedras, no silêncio. Foi também por isso que nunca como desta vez se acolheu assim a quase dilacerante coreografia da Via Sacra ou que nos chegaram, murmurados, os rituais da Páscoa. E foi sobretudo por isso — e eis outra “ponte que estendo através da palavra” — que também nunca como desta vez ecoou no mundo, o verbo de Francisco. O Papa dos tempos nunca experimentados.
Talvez de facto nada seja por acaso. Este homem é o homem deste tempo.