1 Há uns meses, no mundo onde vivíamos – do qual nos queixávamos porque não conhecíamos este – ia pela baixa do Porto quando avisto João Alvares Ribeiro subindo a mesma rua. Foi como se subitamente diante de mim se se tivesse personificado a Quinta do Vallado, da qual é o CEO, com as suas terras e pedras debruçadas sobre o espelho líquido do rio, os agrestes socalcos de onde sai a uva e o vinho, o silêncio quieto daquela saga de suor e exaustão. O Douro enfim, onde estou sempre a voltar como quem regressa a uma civilização. O João sabendo bem isso “ainda bem que me encontrava, tinha uma boa história do Douro para contar”. Chovia muito, entrámos logo ali num café e eu tive muita sorte: a história era melhor que boa.

2 Um belo dia no final do verão do ano passado, a Quinta do Vallado toma conhecimento de um facto assaz inusitado que chega pelo correio: o INSEAD, prestigiada escola internacional manifestava o seu “interesse” em que a Quinta “fosse objecto de um case study” que constasse no MBA do ano lectivo de 2019/20. O porta-voz era o brasileiro Felipe Monteiro, Senior Affiliate Professor of Strategy e Academic Director, Global Talent Competitiveness Index.

O convite era sobretudo um forte desafio: a reputação do INSEAD não lhe costuma permitir erros nas escolhas que faz. E a história da Quinta do Vallado escrita pelos descendentes de Dona Antónia Ferreira, e que tem há dez gerações o mesmo sangue e o mesmo apelido e que há pouco celebrou três séculos de vida, também não. A resposta foi sim e como se poderia dizer não a tal oportunidade remetida por gente tão reputada? Havia ainda o prestígio que a “operação” implicava, o eco que teria, e a estrada da internacionalização que, embora já aberta, o convite agora ampliaria. Por outras palavras, mais visibilidade para o Vallado mas também para Douro, os vinhos, o turismo, o país .

3 “Não hesitei, nem podia”, disse-me naquele dia baço de chuva João Alvares Ribeiro, detalhando alguns dos passos desta aventura, sim, era também uma aventura (ele concordou o substantivo). Do Porto e da Régua começaram por seguir para França documentos e dossiers, num amplo manancial de informação sobre a Quinta do Vallado, o vinho, a região. Uma história pela qual passavam obviamente uns celébres rapazes de oiro que um dia deram um valente safanão ao Douro: mais conhecidos por “Douro Boys”, estão hoje menos “boys” e mais grisalhos, mas o oiro consta manter-se o mesmo. Ainda em 2019, Álvares Ribeiro foi a Fontainebleau gravar uma entrevista para o “Insead Knowledge”, o próprio Insead também se deslocou ao Vallado (através do próprio Felipe Monteiro e da sua equipa). Aprazaram-se iniciativas – reuniões, provas de vinhos, aulas – mas o venenoso “corona” veio a anular umas e trasladar outras para o branco écran do “on line”, símbolo do novo mundo para onde o vírus nos enxotou. Não importa, há boas notícias: o “case study” será apresentado esta semana, dia 4 de Junho, aos 150 alunos do MBA do Insead após o que os professores responsáveis farão “teaching notes” exclusivas para mestres e professores, divulgando-lhes como o “Vallado” deve ser “ensinado” noutras universidades. Como a de Harvard, por exemplo (mas haverá que concluir que nem sempre há tão bons feitos e efeitos a rematar boas histórias).

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4 Foram séculos de resistência e persistência, mitos, paixões e filoxeras, boas colheitas, más colheitas, boa fortuna e má fortuna. O Douro é isto. Um património de mel e fel. Lágrimas e glória.

E já o escrevi aqui um dia, é assim mesmo. A paisagem submerge-nos e a beleza estonteia-nos. Mas por de trás daquela água que por entre caminhos, veredas e montanhas, passa e corre cá em baixo, correndo ora amena e amável, ora intempestiva e traiçoeira, quanta vontade daquela de antes morrer que desistir! Gerações disto que a saga é antiga. Tanta história, tanta gente. Paisagem telúrica, ex-libris nosso e singularíssimo. Descobri-lo, percorrê-lo, senti-lo e depois voltar, voltar sempre, devia ser um exercício (nobre exercício) para qualquer português. Durante alguns anos aluguei lá uma casa que tinha extraordinárias palmeiras no jardim e socalcos que se desdobravam quase até caírem ao rio. E hoje – excelente palmarés – conheço já um bom lote de casas e quintas onde prometo regressar (e costumo cumprir).

5 Muita coisa mudou e a Quinta do Vallado foi, obviamente com outras, um dos marcos da forte mudança que desde o final dos oitenta varreu de vento (quase) vertiginoso aquelas encostas íngremes. Houve a consciência de que alguma coisa teria que se alterar para que conservando o essencial de uma herança e de um património únicos, houvesse rasgo e mãos para ganhar o futuro. Mudaram-se hábitos, modelos, critérios, prioridades. Outra filosofia, maior fôlego, uma visão feita de objectivos que assegurassem chão sólido por de baixo das vinhas. “Ou se desistia, ou se criava uma marca” lembro-me de ouvir dizer a João Álvares Ribeiro, há um bom par de anos. Como nas paragens durienses não se desiste, também a família Ferreira não desistiu. Começava outra vida e João foi um dos motores de arranque dessa imensa empreitada. Não está nem esteve sozinho no desafio, o novo fôlego do Douro deve-se a muitos e os louros também mas hoje é do “case study” Vallado que aqui se trata.

6 E trata-se porque gosto de gostar e depois dizer que gostei e quando se trata do Portugal que vale a pena, gosto mais. E em tempo fechado, feito de espinhosos dias e baça incerteza, gosto mais ainda.

O que me suscita a lembrança de uma conversa interessante que tive a propósito desta mesmíssima história com alguém com quem costumo (por vezes) falar a mesma língua. Dizia-me esse amigo que lhe parecia haver sempre um ar a meio caminho entre o provincianismo deslumbrado e a saloiice, numa notícia em que os portugueses se gabassem de uma distinção vinda de fora. Ele nunca lhe daria jeito fazê-las além de haver várias empresas nacionais já alvo de case studies  (subentendido: e não ficou tudo de boca aberta.) E se fosse assim? Teria ele razão? Uma escriba travestida em saloia deslumbrada? Fiquei a pensar naquilo. Mas depois decidi-me pelo contar desta história. As paginas económicas dos jornais porão certamente em relevo factos e factores para os quais não tenho competência – nem de os elencar, nem analisar, nem contabilizar. É aliás por essa mesmíssima razão que aqui não dou notícia dos andamentos e fundamentos do próprio “case study”; simplesmente não estaria a altura. O que puxou por mim foi a notícia em si mesma. Acho que terão percebido que falei de outro Portugal que não o circunstancial, o do momento, o das actuais “autoridades”, mas sim de outra gente. Amante do risco, praticante do progresso e militante do país. E inscrita por direito próprio na mais poderosa paisagem do país.