Num artigo recente falei sobre as circunstâncias de vida do Clero, e passei ao de leve num aspeto que merece mais demora que rapidez. Falei num clima de “espionagem permanente da intimidade” que “não raras vezes, termina em chantagem emocional e afetiva”. Na verdade, como em quase todas as coisas, esta situação em concreto é mais reflexo de algo maior do que uma circunstância circunscrita a uma classe específica. E, neste caso concreto, parece-me que o centro deste assunto tem muito que ver com um clima de puritanismo crescente, no qual, infelizmente, também o clero é visado. Mas começo com uma pequena história.
Há uns bons anos, seguramente mais de oito, no intervalo de uma formação, aproveitámos – os meus colegas e eu – para falar com o responsável pela aula sobre o estado da política nacional, dado que este era uma pessoa extremamente bem informada e com alguma experiência pessoal na área. A certa altura da conversa, alguém mostrou perplexidade por um determinado político português não se “chegar à frente”, considerando, acima de tudo, as suas capacidades e competências. A resposta do formador foi imediata: “não acontece porque é homossexual”. Nesse momento, percebi que essa informação era uma espécie de talismã, de arma apontada à cabeça, de bomba pronta a detonar para destruir a credibilidade desse político, mal ele se tornasse uma ameaça às pretensões de um qualquer adversário. Na ocasião, percebi, igualmente, que ele só se tornaria livre dessa “acusação” se fizesse um doloroso caminho de exposição pública, ou se remetesse a lugares de segunda fila.
Casos semelhantes ao que em cima descrevi são de todos conhecidos. No caso do Clero, o celibato, mas, no fundo, a sexualidade e a afetividade no geral, são uma bênção, mas também é uma aprendizagem de avanços e recuos, de estados intermitentes de maior ou menor fragilidade, fidelidade ou maturidade. Estranho seria que ao contrário fosse. Mas isso parece que abre flanco para que a vida afetiva seja uma moeda de troca quando algo corre menos bem.
Mas, como disse, isto não é um exclusivo clerical. Vivemos no país onde um dirigente político histórico disse, acerca de Sá Carneiro, na altura em que este pedia o divórcio para se juntar a Snu Abecassis, que “um homem que não sabe governar a própria casa, não pode governar o seu país”; e podemos falar, ainda, de Dick Cheney, que se viu impedido, entre outro motivos, de concorrer à presidência dos E.U.A. por ter uma filha lésbica; ou das fotografias do motoqueiro François Hollande a entregar croissants numa morada não oficial.
Torna-se, por isso, imperioso tirar o tapete a uma espécie ainda mais desprezível de abutres, que usam a vida privada, e ainda mais a vida íntima, como plataforma para ajustes de contas, vinganças e chantagens. O argumento, já se sabe, é sempre o mesmo: quem não consegue “controlar os instintos carnais” – seja lá o que isso for – também não consegue ter discernimento para mais nada. Por agora, não tenho tempo para dissertar sobre a estupidez deste argumento, mas podem sempre discuti-lo com Picasso, Charlie Chaplin ou Churchill. E isto não significa – saliente-se – que tudo o que é possível é moralmente aceitável.
Ao que parece em 1476, Leonardo da Vinci foi acusado de “sodomia”. A denúncia aconteceu após os Uffiziali da Notte recolherem uma denúncia anónima colocada num tamburo, uma caixa em forma de tambor, onde os florentinos podiam deixar as suas queixas contra quem quer que fosse. Não sei até que ponto o inventor do método e do objeto em causa pensou nisso, mas quem tivesse o azar de ver o seu nome aí colocado corria o risco de ser mesmo o bombo da festa. Infelizmente, parece que os tempos não são muito diferentes. A nova polícia dos “bons costumes” não sabe distinguir entre vida pública, vida privada e vida íntima. E isso influencia, decisivamente, entre outras coisas, a capacidade de encontrar pessoas na dita “sociedade civil” para servir fora do seu contexto laboral.
Creio que foi o grande cronista brasileiro Nelson Rodrigues que escreveu que “se chega à virtude pelo cansaço”. De facto, somos demasiado preguiçosos para chegar até ela de outra maneira. E, a verdade, é que como todos os outros, não tomei, como ainda não tomo, todas as decisões de maneira acertada. Não fui, nem sou, – como ninguém é, na verdade – sempre justo, correto, moralmente impecável, sacerdotalmente piedoso, cristãmente diligente. Todos temos direito a “glórias, terrores e aventuras”, e para alguém que não gosta, não percebe ou não entende, deixo uma só palavra: paciência. Só tem medo de esqueletos, quem nunca viveu de verdade.