E, depois, há uma noite qualquer em que uma pessoa desata a acertar contas. E como qualquer assassino a soldo seja de quem for, mata um e mata outro. Como se, em vez de deitado e a dormir, fosse o protagonista de um filme, daqueles de classe C, duma violência sem enredo, sem produção nem figurantes. Só mesmo nós e as pessoas que nos fizeram mal nos destacamos nessa história. Mesmo que, a páginas tantas, sem pingo de taquicardia, se eliminem um a um, os protagonistas dos nossos medos. Sem se estar ofegante. Nem a respirar fundo. Há só uma aragenzinha que, como uma sombra disfarçável, nos pergunta: “serei mesmo eu, esta pessoa?”. Que, ainda assim, sem se tornar fria, não nos impede de matar um e matar outro. A seguir, abre-se um olho. Salta-se para o duche. E, como sempre, o dia começa num bulício. Sem espaço nem para matar o tempo.

A imaginação é a linguagem do cérebro. As imagens que guarda, combina e religa, permanentemente, são a forma como analisa as experiências de maneira a que elas ocupem pouco lugar na memória. Guardando, sobretudo, uma espécie de microfilme de cada uma, composto pelos eixos que as unem entre si, despidos do acessório. Preservando os esquemas “esqueléticos” que as sustentam, que sirvam para analisar quaisquer aspectos semelhantes de cada nova experiência, sempre que seja necessário. Talvez seja por isso que o meu amigo Mauro Mancia descreve o sonho como a religião da mente. Deixando entender que o incansável exercício de ligar e religar das coisas que o sonho faz, nos encaminha para a perplexidade e para o maravilhamento.

O sonho arruma-nos o corpo e põe a cabeça a respirar. E ensina-nos que não, dormir não é meio-sustento. Mas os sonhos, sim! Vendo bem, o sonho é um costureiro de imagens. Ele liga-as e liga-as num enredo. Mesmo que, por vezes, decida dar-nos um breve empurrãozinho até a um filme de classe C… O cérebro, o sonho ou a memória não têm nada de câmara da Polaroid, como diz Damásio. Ou, se preferirem uma leitura com alguma psicanálise dentro, quanto mais fotográfica é uma memória menos ela é memória; e mais se torna traumatismo. Ou, ainda, a melhor forma de ficar preso a uma memória que se impõe, como se fosse uma fotografia inamovível, é fugir-se dela. Do mesmo modo, para se ficar preso num sonho é só preciso que se escape de o sonhar.

É claro que todos nós temos imagens que nos sinalizam para nódoas difíceis que se impõem como fotografias na memória. Como toda a gente, numa aflição, mais facilmente reagimos fugindo delas, do que perscrutamos o significado que as memórias poderão ter, falando e agindo sobre elas. Mas há quem viva preso num enredo de imagens e, aí, sinta que imaginar pode representar a boca do inferno por onde se cai até se morrer. É por isso que, nessas circunstâncias, as pessoas que vivem presas a memórias traumáticas que as perseguem, lutam não tanto para controlar, de forma férrea, tudo aquilo que sentem, e que não podem sentir, mas interditam-se, sobretudo, de imaginar.

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É de imaginação em imaginação que os sonhos se fazem. Os sonhos são ou bons ou maus porque as experiências que eles encenam são, elas próprias, boas e más. Por isso mesmo, os sonhos maus, de verdade, não são os pesadelos. São aqueles que, de tão reprimidos vivermos, nos levam a inibir-mo-nos, até, de sonhar. Como se nem a dormir nos descontraíssemos. Em vez de fecharmos os olhos e nos confiarmos ao sono, cerrássemos as pálpebras enquanto os olhos parecem sempre abertos. E, em vez de sonhar, só fugíssemos.

Os sonhos, também eles, nunca são fotografias da Polaroid. São filmes; na verdade. Por vezes, muito pouco óbvios. Que mais insinuam conteúdos do que exibem. E que aguardam que sejamos capazes de desconstruir as suas histórias e recombinar imagens, e de as ligarmos a pontas soltas que eles nos sugerem para que, de síntese em síntese, percebermos o que só eles nos sabem dizer. Tudo coisas que a censura que pomos no que sentimos e naquilo que imaginamos não nos permite que falemos. Muitas vezes, até de nós para nós. Noutras, mesmo a dormir.

Há sonhos “maus” que — ao contrário das histórias que utilizamos para adormecer — nos dão um safanão. Servem para nos despertar para aquilo que, silenciosamente, se passeia por nós. Mesmo que comecem por só nos assustar. É claro que quando se mata a eito num sonho entre o sono e o despertar, talvez isso não seja o sinal que indicia um ódio homicida, mais ou menos desmedido à solta, que nos possa transfigurar e nos faça sermos capazes de matar. Matarmos um pai, num sonho, por exemplo, pode querer dizer que ansiamos muito que morram os lados dele que nos trazem à dor, deixando-o soltos deles e capaz de nos amar como precisamos que nos ame. Ou acertar as contas com este e com aquele — num sonho qualquer, antes que se acorde — pode representar a forma como nos sentimos “possuídos” pelas maldades de quem nos faz mal. Aconselhando-nos a eliminá-las da nossa vida para desobstruir o sonho para a capacidade de o sonhar. Limpando aquilo que nos conspurca e tolhe e afasta, todos os dias, da capacidade de sonhar.

Mas o sonho, para um tempo muito tecnocrático e muito tecnológico, parece ser uma reminiscência do mundo do jurássico que, teimosamente, perdura em nós. Daí que se fale muito pouco dele. Às vezes, parece ter-se tornado quase um tabu. Afinal, quantas vezes escutamos alguém dizer: “o meu sonho é…”? Ou quantos de nós vamos, assumidamente, atrás dos sonhos, fazendo deles a locomotiva que nos rasga caminhos?

Por isso mesmo, quando converso com adolescentes, preocupa-me muito que, entre o assustado e o insolente, me respondam que não sabem para que é que servem os sonhos. Dando a entender que não os tratam por tu. Antes os domesticam. Aquilo que têm de mais parecido com o sonho é o desejo de quererem ser, sobretudo, ricos. Muito ricos. Mas sem sonharem nem sobre o como se faz. Imaginam um destino sem sonharem com o caminho. E sem se darem conta que à riqueza da vida nunca se chega sem que se sonhe. “- Mas, ainda assim, tens um sonho que alimentes — um, “quando eu for grande, vou ser…” — que elejas como um desejo e que faça que tu queiras muito vir a conquistar?…” E a resposta, já embrulhada num embaraço tenso que deixam fugir é: “- Não!”. E o sonho, entre nós, fica por ali.

Do sonho fala-se, muitas vezes, fugindo dele. Muitos de nós, quando fazemos um flashback e trazemos à memória tudo aquilo que o nosso sofrimento impediu que desejássemos, acabamos a reconhecer que nos tiraram, até, as oportunidades para sonhar. Que é uma forma de darmos conta que vivemos atolados em tantas falsas prioridades que confiarmo-nos ao sonho, destacarmos dele a capacidade de passear com a imaginação, escutando o significado daquilo que ela nos diz (ou, até, o desafio de sonharmos acordados), nem sempre é um direito que se tenha. Daí que a liberdade comece quando não fugimos de sonhar.

Mas apesar da forma como parecemos ir fugindo dos sonhos, há dias em que as redes sociais, as revistas e as televisões dão a ilusão de que vivemos rodeados duma produção industrial de sonhos sobre sonhos. Às vezes, o mundo sugere-se como uma fábrica de sonhos. Enquanto parecemos ir ficando sem sonhos para escutar. Nem tempo para sonhar…

Mas fugimos. Fugimos mais do que parece. E, levadas ao desespero, há pessoas que só pedem ajuda porque já morreram. Como se a relação que têm com a vida tivesse escorregado para territórios tão cercados por tantas angústias que levaram a que os sonhos tenham morrido, um a um um. No fundo, como todos nós, elas sabem que primeiro, morrem os sonhos. E, depois, morremos devagar. À medida que deixamos de sonhar. Porque parece que a vida toda deixou de se transformar em personagens, em cenas, em acção, em luz, em histórias, em molhos de palavras e enredos. E ficam presas ao mundo real. Como se ele fosse um espaço etéreo que não deixa que projectemos os nossos sonhos até que cresçam e se transformem em desejos.

Se agora é assim, dantes não era melhor. Havendo quem falasse da loucura como um sonhar acordado. Dando a entender que a forma como algumas pessoas se confiavam à imaginação as empurrava para um delírio com que a confundiam com a realidade. Fosse como fosse, uma ideia dessas levava a presumir que o futuro do sonho poderia estar na loucura. O que seria um perigo. Mas não é verdade! O problema dos sonhos não é tanto que se sonhe. Mas que se confunda os símbolos com que nos falam com sinais que ele nos dá. Como se sonhar isto quisesse dizer sempre aquilo. E só aquilo! Quando os sonhos, incansavelmente, nos contam histórias. E só à falta de não desconstruirmos a sua fala num significado que se perscrute, é que passamos a ter medo que se transformem em sinais (ou em presságios, até). Que levam a que se presuma que aquilo que se imagina (só porque se imagina) faz com que as coisas aconteçam.

Este sonhar em voz alta da loucura tem pouco tem a ver com o sonhar acordado, a dois, duma paixão. Construir e partilhar um sonho leva a que comunhão e autonomia se casem. O dentro e o fora se confundam. O hoje e o para sempre se toquem e se remexam. E, uma na outra, duas pessoas cresçam e cresçam. Só porque sonham acordadas. De mãos dadas.

Chegados aqui, era bom que matássemos o que nos mata, com porcariazinhas, a capacidade de sonhar. E — mais! — era bom que não nos recusássemos a ousadia de fechar as fábricas dos sonhos com que nos afugentam de sonhar. E, quais artesãos, obstinados pela sua arte, apanhássemos, um a um, cada sonho que nos foge. E por cada um que se apanhe, o arejássemos. O déssemos à luz. O abríssemos ao ar, devolvendo-o ao voar. E, como quem se senta diante do seu animatógrafo, escutássemos cada imagem que, pé ante pé, se destaque dos sonhos e se passeie pela cabeça. Guardássemos o ar que isso nos traz. E — então, sim — vivendo-o como o nosso precioso respirar, de todas as vezes que fossemos sonho adentro,  teimássemos sonhar.