Os Jogos Olímpicos são vistos como um sinal de paz e de união, em torno dos valores da camaradagem e da lealdade que a atividade desportiva pode trazer consigo para o ser humano. Não se trata somente de jogos a ganhar, mas de uma celebração daqueles valores – os melhores – que o ser humano é capaz de viver. Deste modo, os Jogos Olímpicos podem ter e têm habitualmente um papel interessante no quadro social mais amplo: um sinal de que é possível construir uma sociedade justa, fundada em valores que promovem a dignidade da pessoa humana e que visam a paz e a concórdia entre os povos. Tudo isto se pode decantar da Carta Olímpica, em que se apresentam os princípios fundamentais deste evento.

O Comité Olímpico Internacional sintetiza em três ideias os valores que pretendem transmitir: buscar a excelência e incentivar que cada um seja o melhor que pode ser; demonstrar respeito, de diversas formas (por si próprio, pelos outros, pelas regras, pelo ambiente, pelo publico); celebrar a amizade como valor fundamental para a convivência. É isso que se pretende dos Jogos Olímpicos e é isso que se espera que eles continuem a ser.

Contudo, a sessão de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 não foi isso. Quando se promove o escárnio só se será capaz de ferir os outros. Muitos cristãos sentiram-se profundamente magoados com a representação da Última Ceia, que depois já não era uma Última Ceia, mas um festim dos deuses, representação que, por sua vez, com honestidade histórica, se reconhecia que era ela mesma uma paródia à Última Ceia. Ou seja, foram capazes de meter os pés pelas mãos para não reconhecer que se afastaram totalmente daqueles valores que os Jogos Olímpicos querem celebrar.

Tudo isto deve ser visto como uma oportunidade para refletir o que se pretende enquanto sociedade. Se queremos valores que ajudam as pessoas a viver como aquilo que são em si mesmas, em que se promove aquilo que há de melhor no ser humano, em que se incentiva à superação da mediocridade em busca da excelência, então os Jogos Olímpicos fazem sentido. Mas se, pelo contrário, pretendemos uma sociedade que promove o isolamento pessoal, em que cada um só pode ser aquilo que o rótulo impõe, em que cada um sobrevive por si mesmo, então, abandonem-se estes eventos que querem celebrar o que há de melhor na humanidade. Fechemo-nos, então, entre quatro paredes.

Podemos encontrar na filosofia francesa uma expressão que cunha muito bem o que se pode tornar a nossa sociedade quando o ser humano se fecha sobre si próprio: «L’enfer sont les autres», escrevia um filósofo existencialista ateu. Efetivamente, quando o ser humano se fecha sobre si próprio, quando se isola, descobre que a sua liberdade acaba onde começa a liberdade do outro e que o outro rouba a sua liberdade. Estas são as três sentenças fundamentais de uma peça de teatro criada por aquele filósofo. Efetivamente, quando se abandona o fundamento transcendente da existência, o ser humano está entregue a si próprio e não se consegue apresentar a si sem ser em contraste ou em conflito com o outro. Desse modo, a minha liberdade não pode viver com a liberdade do outro, precisamente porque não existe um fundamento transcendente, mas apenas o conflito, a tensão irresolúvel. O que os fundamentos dos Jogos Olímpicos mostram é que, mesmo prescindindo do argumento teológico, é possível encontrar algum fundamento – nos valores da solidariedade, da lealdade e da excelência – que tornam possível a sã convivência das pessoas e dos povos. Não estamos condenados a ver o outro como o inferno e não estamos condenados a ter de obliterar, escarnecer ou apontar o outro para que eu próprio me afirme.

Não estamos fechados entre quatro paredes e, por isso, alguém só pode ser realmente livre quando a sua liberdade convive com a liberdade do outro. Não entram em choque, nem se anulam mutuamente. Coexistem. Coabitam. Valorizam-se mutuamente. Deste modo, há o respeito pelo outro, pelas tradições interpessoais, pelas instituições. Quando se entra no escárnio, na chacota, só se conseguirá ofender o outro. Quando se reproduzem quadros que na sua génese já eram representações de escárnio, está-se a perpetuar o conflito. Não é anular a cultura, mas saber o espaço e o tempo de cada coisa. Dizia o Papa Francisco no Domingo que antecedeu a abertura dos Jogos Olímpicos: «O desporto tem também uma grande força social, capaz de unir pacificamente pessoas de culturas diferentes. Espero que este evento seja um sinal do mundo inclusivo que queremos construir, e que os atletas, com o seu testemunho desportivo, sejam mensageiros da paz e bons modelos para os jovens». Sabemos que resta esperar que os atletas vivam estes valores, porque a equipa organizadora da sessão de abertura do evento não o foi. E ofendeu muita gente.

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