Muito se tem dito e escrito sobre a situação da Igreja católica no mundo atual. Os casos de abusos de menores, a divulgação da corrupção no interior da Igreja, além de tantos outros gritos de alerta. Atitudes e palavras que desdizem o ideal de vida dos que se assumem como discípulos de Jesus Cristo: tudo isto mostra uma situação preocupante. Quem quererá ser católico hoje? Qual o papel que a Igreja é chamada a desempenhar nos nossos dias? Parece-nos que a questão é muito mais profunda e não podemos ficar apenas pelos soundbites.

Enquanto homens e mulheres de Igreja, os católicos correm muitas vezes o risco de se preocupar com os números. Os números são importantes na medida em que nos permitem compreender a realidade, mas não podemos correr atrás dos números. Quantas vezes, enquanto Pároco de várias comunidades cristãs, oiço pessoas que dizem que temos de ser menos exigentes se queremos ter mais praticantes. Qual é o problema desta atitude? É o que se vê: mesmo com menos exigência, o número de católicos praticantes é abismalmente baixo e não é por se baixar a exigência que se consegue aumentar o seu número. Antes pelo contrário. Temos neste caso o exemplo da lógica que presidiu ao Catecismo holandês e consequente ação eclesial: a Igreja tinha de se adequar ao mundo, tinha de falar com a lógica do mundo. Um estudo publicado recentemente mostra como nos Países Baixos em 1970 havia 2,7 milhões de católicos praticantes. Em 2016 contavam-se 173.000. A previsão indica que em 2030 serão 63.000. Esta é uma situação que nos deve fazer pensar a todos os católicos, pois, mesmo se em Portugal a situação não é aquela, não deixamos de estar a caminho de algo que pode ser semelhante. A secularização do mundo não é o mais preocupante; mais preocupante é a secularização da própria Igreja e da lógica dos católicos em geral e dos pastores em particular.

O problema da eficácia da Igreja nos nossos dias não está tanto nos pecados do clero (ainda que seja um assunto importantíssimo e que mostra uma situação que deve ser combatida), mas na total falta de relevância em que a Igreja mergulhou. O que nos deve assustar, assim, não é a Igreja católica tornar-se minoritária, mas tornar-se irrelevante. Durante muitos séculos a sociedade ocidental constituiu-se em torno dos valores e da simbólica cristã: aqui a Igreja encontrava muita da sua relevância. A vivência social dependia da reprodução dos rituais, dos gestos e das palavras que enquadravam o quotidiano. Quando a estrutura social abdicou da questão religiosa enquanto constituinte da vida em sociedade, a Igreja já não podia esperar essa «boia de salvação» para si mesma e para a relevância do seu papel. Quando a Igreja católica se torna minoritária, como nos nossos dias, se não tiver nada mais relevante para oferecer ao mundo que o número dos seus fiéis, então torna-se totalmente irrelevante, porque o número é baixo. É aqui que encontramos a importância de regressar aos fundamentos da fé católica para compreender o problema que assola a Igreja hoje e, também, onde encontramos a solução.

Grande parte dos membros da Igreja nas últimas décadas optou por uma «conversão antropológica», isto é, o seu olhar voltou-se tanto para a situação do homem atual que se esqueceu que a Igreja é enviada, em todos os tempos, a anunciar que Aquele bebé que nasceu em Belém de Judá e que morreu pelos 30 anos em Jerusalém no alto de uma cruz é Deus. E é Deus que vem ao encontro do ser humano, na sua situação concreta. A Igreja não anuncia o ser humano só por si, mas o Homem-Deus, que procura a humanidade para a conduzir à comunhão com Ele. A Igreja é enviada a recordar que o ser humano pode ser muito mais que a situação em que vive, porque é chamado a ser santo e a encontrar o caminho da santidade na situação em que se encontra. Muitos clérigos e teólogos, diante da incapacidade de o homem contemporâneo compreender as categorias metafísicas que estruturavam a teologia tradicional católica, abdicaram destas categorias e procuraram fazer teologia com os paradigmas de filosofias ateias na sua origem. Como escreveu Cornelio Fabro: «Não se cura a “enfermidade mortal” do homem moderno, que é o materialismo ateu, bebendo o seu veneno e dando-lhe outro veneno» (L’avventura della Teologia Progressista). O materialismo ateu nunca se ajoelhará diante do Menino de Belém para O adorar e reconhecer como Deus, simplesmente porque a possibilidade de haver Deus não faz parte das premissas. Aliás, a premissa é de que Deus não existe, nem tem ser. Assim, precisa a Igreja no seu todo, e a teologia em particular, voltar a olhar o transcendente como algo real, como verdadeira possibilidade e reconhecer que o que Deus traz ao mundo por meio da Igreja é o testemunho dessa mesma transcendência, em que o homem deixa de estar condenado ao materialismo, mas pode esperar algo mais.

A relevância da Igreja católica nos tempos atuais pode encontrar-se, assim, na sua capacidade de oferecer critérios cristãos ao mundo atual. O mundo que é capaz de se pôr em marcha para ajudar alguém só quando as imagens entram pelos olhos dentro pela televisão, com cenas chocantes, é este mesmo mundo que precisa saber que Deus vem ao encontro do ser humano com um horizonte de vida que ultrapassa o imediatismo do jornalismo. Na atual pandemia isto foi por vezes gritante: tantos padres preocupavam-se mais em lembrar a colocação da máscara e a desinfeção das mãos do que ensinar a rezar e a olhar a situação atual com critérios cristãos. Não quer dizer que aquilo não fosse importante, mas não é a primeira missão do sacerdote. Deus também tem uma palavra a dizer sobre a pandemia e não pode ser ignorado, e a Igreja é profeta desta palavra. Jesus Cristo não pode ser só uma decoração festiva para determinadas épocas do ano, mas tem de ser a proclamação dos valores que constituíram a sociedade ocidental. Se a Igreja quer ser relevante hoje tem de recordar isto mesmo. Se perde as suas raízes – no acontecimento de Jesus Cristo e na história de 2000 anos de santidade – e se perde o seu horizonte – a escatologia cristã – então a Igreja torna-se totalmente irrelevante. A Igreja precisa, para manter a sua vitalidade, recordar a transcendência através de uma espiritualidade fundada na revelação cristã. Cada católico tem de viver convicto de que é chamado a mais do que uma existência apenas material. Recordar que no amor ao próximo se constitui a vida da sociedade e que sem este amor desinteressado, a sociedade torna-se apenas uma luta de egoísmos. Hoje, mais que nunca, precisamos de espiritualidade que seja autenticamente cristã.

É um facto que a Igreja já se tornou irrelevante pelo baixo número de católicos que conta nas suas fileiras. Mas será isso que é importante? Não. Para já a Igreja deve agarrar a oportunidade de voltar a apresentar o que ela tem de melhor e que mais nada nem ninguém neste mundo é capaz de oferecer: a certeza de que Deus visita o Seu povo, que derrama sobre cada pessoa a Sua graça se se lhe abre o coração. Assim, a Igreja será relevante, e muito, se voltar a oferecer a um mundo desgastado pelo egoísmo e pelo materialismo, o anúncio alegre do amor de Deus. Quando a Igreja abdicar de se «adequar» a todo o custo ao mundo, para ser testemunho da transcendência divina, mostrando como está no mundo e como pretende transformar o mundo. Quando a Igreja for sinal de contradição, não porque vai contra o mundo, mas porque é capaz de ver além dos critérios do mundo.

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