A partida do Papa Emérito Bento XVI para a Casa do Pai marca o fim de uma era, que nos últimos tempos vimos fechar diante de nós, sendo um outro ponto marcante o falecimento da Rainha Isabel II de Inglaterra. É o fim de uma geração que passou pelo tempo que mediou os dois conflitos mundiais e assistiu ao encrespamento das relações internacionais e sociais; participaram na II Guerra Mundial e foram membros ativos da reconstrução do mundo, processo que aconteceu por entre muitos conflitos, incertezas e expectativas. Em tudo isto participou Joseph Ratzinger e todos estes acontecimentos o moldaram profundamente. Quem foi Bento XVI? No final destes 95 anos de vida, que memória fica dele?

A grandeza de uma pessoa reconhece-se pela forma como se relaciona com os outros e com o mundo e é a partir deste prisma que eu quero aqui fazer uma revisão do perfil de Bento XVI. Antes de mais, foi o Papa que ficou conhecido pela relação com o mundo da cultura. Ninguém como ele foi capaz de encetar um diálogo franco, aberto e frutífero com os mais diversos âmbitos culturais. Isso foi possível porque ele era um homem da cultura, não só na sua relação com o piano, mas porque se tornou um observador atento das produções culturais enquanto expressão do mais íntimo do coração humano. Ainda como Cardeal publicou um livro sobre a liturgia, onde encontramos uma das reflexões mais originais sobre o papel da arte para a Igreja e, também, como a fé cristã tem um papel fundamental para a produção artística. Neste sentido, conclui na referida obra: «Quem observar com atenção, aperceber-se-á de que, mesmo nos tempos que correm, nasceram e continuam a nascer através da inspiração da Fé obras de arte notáveis, tanto no âmbito da imagem como no da Música e da Literatura. Na Liturgia, a alegria que sentimos através de Deus e do contacto com a sua presença continuam, também hoje, a ser um poder de inspiração inesgotável. Os artistas que se submetem a esse encargo não necessitam, de maneira nenhuma, de se sentir na retaguarda da cultura, pois a liberdade fútil, da qual saem, satura-se dela própria. A humilde submissão àquilo que nos precede emite liberdade genuína, conduzindo-nos assim à verdadeira dimensão da nossa vocação humana» (Introdução ao espírito da liturgia, Lisboa, Paulinas, 2001, p. 115). Daí Bento XVI possa ter dito em 2010, ao mundo da cultura de Portugal: «Fazei coisas belas, mas sobretudo tornai as vossas vidas lugares de beleza» (Discurso, Centro Cultural de Belém, 12 de maio de 2010). A beleza não nasce da futilidade e da banalidade, mas de uma vida que se encontra com o eterno de Deus que reside misteriosamente e silenciosamente no coração de cada pessoa.

Ao mesmo tempo, Ratzinger-Bento XVI foi um homem profundamente envolvido com as questões políticas. Antes de mais, pela resistência antinazi que aprendeu na sua casa paterna, antes de mais pela influência do pai, mas também do seu tio, Alois Ratzinger, padre, ambos aposentados antes do tempo pelas suspeitas que levantavam junto das forças de Hitler (a este respeito, remeto para a biografia de Bento XVI escrita por Peter Seewald, que já se encontra traduzida em português do Brasil e que se espera em breve numa edição no nosso país). Aliás, a experiência dolorosa da ascensão do nazismo na Alemanha permitiu uma análise precisa e fina, ao longo das décadas que se seguiram, dos processos de construção societária. Isso conduziu a um conjunto de discursos proféticos ao longo do seu pontificado romano, em que sinalizou os desafios que se colocam à sociedade ocidental e como esta necessita de recordar os aspetos fundantes dela mesma: a ética judaico-cristã, a filosofia grega e o direito romano. São incontornáveis o discurso na Universidade de Ratisbona, em 12 de setembro de 2006, sobre a relação entre a filosofia grega e a fé cristã; o discurso no Collège des Bernardins, em Paris, no dia 12 de setembro de 2008, sobre as raízes da cultura europeia; o discurso no Parlamento federal alemão, no dia 22 de setembro de 2011, sobre os fundamentos do Estado liberal de direito. São textos que não só não perderam atualidade, como nos acontecimentos mais recentes encontraram uma maior necessidade de voltarem a ser lidos e refletidos por todos. Nestes discursos encontramos não só o grande génio de Bento XVI, como também o caráter providencial e profético do seu pontificado, cuja vitalidade do património intelectual que legou continua a surpreender a todos.

Muitas vezes apresentava-se Bento XVI como um intelectual distante e frio, no entanto, mostrava-se próximo, amigo e atento. Conquistou de forma muito especial o coração de muitos jovens quando soube apresentar a razoabilidade da fé num mundo em que quem frequenta a escola e a universidade tantas vezes é bombardeado com apresentações redutoras da fé, como se fosse algo próprio apenas de pessoas reduzidas intelectualmente. Bento XVI devolveu a intelectualidade à fé não só através do diálogo com o mundo da cultura, como vimos anteriormente, mas convidando a estudar e rezar o catecismo. É significativo o que assinala no prefácio que escreveu para o YouCat: «Muitas pessoas me dizem: os jovens de hoje não se interessam por isso. Duvido de que isto seja verdade e estou certo do que digo. Os jovens de hoje não são tão superficiais como se diz deles. Eles querem saber realmente o que é a vida. Um romance policial é excitante porque nos insere no destino de outras pessoas, que também poderia ser o nosso. Este livro é cativante porque fala do nosso próprio destino, pelo que está profundamente próximo de cada um de nós» (YouCat – Catecismo jovem da Igreja Católica, Lisboa, Paulus, 2011, p. 9). A «democratização» da doutrina e da teologia que propõe nasce da certeza de que a fé cristã é algo que vai ao encontro dos anseios mais profundos do ser humano e devolvem sentido e sabor à vida Era capaz de chegar ao coração dos jovens, como quando saudou os que se reuniram junto da Nunciatura Apostólica, em Lisboa, em 2010, e disse-lhes: «Obrigado pelo testemunho jubiloso que prestais a Cristo, eternamente jovem, e pelo carinho que manifestais ao seu pobre Vigário na terra com esta serenata. Viestes desejar-me a boa noite, e de coração vo-lo agradeço; mas agora tendes de me deixar dormir, senão a noite não seria boa, e o dia de amanhã está à nossa espera» (Saudação, 11 de maio de 2010).

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Quando se pensava que tudo estava dito sobre Jesus Cristo, surpreendeu todos quando apresentou o primeiro volume da obra Jesus de Nazaré. Foi inovador em vários aspetos: primeiro, por convidar a redescobrir a pessoa de Jesus. Afinal, ainda não estava tudo dito sobre Ele e podia redescobrir-se, usando o que de bom a investigação bíblica e histórica trouxe nas últimas décadas. Por outro lado, assinava como Joseph Ratzinger, porque compreendia que esse livro não era uma obra do magistério papal, mas de um teólogo, que se queria sujeitar à crítica dos outros teólogos. Sucedeu-se o segundo e o terceiro volume que completaram este convite a olhar para Jesus Cristo de forma nova, provocando um vivo interesse pelo debate teológico. De forma particular os jovens sentiram-se atraídos a ler este livro e a colocar Jesus no centro das suas vidas. Aquela intelectualidade que Bento XVI trouxe para a fé encontrava a sua expressão máxima no encontro com Jesus. Descobria-se assim a verdadeira natureza da fé, condensada nas seguintes palavras: «Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo» (Encíclica Deus caritas est, n.º 1).

Prosseguiu a obra de João Paulo II, de forma particular o diálogo ecuménico e inter-religioso. Retomou os encontros de oração pela paz em Assis, trazendo uma novidade: entre os representantes das várias religiões era necessário incluir também aqueles que não pertenciam a qualquer denominação religiosa. Tinha consciência de que no coração humano reside o desejo da verdade e, portanto, era necessário que estes também fossem incluídos na jornada de reflexão e oração pela paz. As suas palavras ilustram a sua proposta: «Ao lado destas duas realidades, religião e anti-religião, existe, no mundo do agnosticismo em expansão, outra orientação de fundo: pessoas às quais não foi concedido o dom de poder crer e, todavia, procuram a verdade, estão à procura de Deus. Tais pessoas não se limitam a afirmar “Não existe nenhum Deus”, mas elas sofrem devido à sua ausência e, procurando a verdade e o bem, estão, intimamente estão a caminho d’Ele. São “peregrinos da verdade, peregrinos da paz”» (Discurso, 27 de outubro de 2011).

Finalmente, o legado deixado por Bento XVI é o de teólogo. Os seus textos são fontes inesgotáveis de aprendizagem e de oração. Ao encontrarmo-nos com a notícia da sua morte, não quero concluir este artigo sem assinalar as palavras do então recentemente nomeado Arcebispo, num livro que era fruto do seu trabalho académico como professor de Teologia a respeito das realidades últimas da vida do ser humano, intitulado Eschatologie. Neste conclui algumas reflexões sobre a morte dizendo: «O homem que não se confronta com a vida nega-se a viver essa vida. Fugir do sofrimento é fugir da vida. A crise do Ocidente deve-se, não em último lugar, a uma educação e a uma filosofia que querem salvar o homem evitando a cruz, contra a cruz e, em consequência, contra a verdade. Vamos repeti-lo outra vez: o valor relativo de tais caminhos é inegável. Podem reportar uma ajuda preciosa se se reconhecem como parte de um todo mais amplo. Mas, tomados isoladamente, desembocam no vazio. Porque, em realidade, o homem só se pode conformar com uma resposta, a que se encarrega da inabarcável exigência do amor. A vida eterna e só ela é a resposta suficiente à questão sobre a existência e a morte humanas neste mundo» (Escatología, Barcelona, Herder, 2008, p. 122). É esta vida eterna que acreditamos que Bento XVI agora experimenta e é também para ela que a sua vida nos aponta. Por tudo isto, só podemos ter uma palavra a Joseph Ratzinger: Obrigado!