Este texto é sobre o apóstolo São Paulo e as mulheres. No bloco de saudações do final da carta aos Romanos, escreve: «Saudai a minha querida Pérside, que tanto se afadigou pelo Senhor» (Rm 16, 12). Logo em seguida: «Saudai Rufo, o eleito no Senhor, e a mãe dele que o é também para mim» (v. 13). Um par de versículos à frente: «Saudai Filólogo e Júlia, Nereu e sua irmã, Olímpio e todos os santos que estão com eles» (v. 15). Isto só na carta aos Romanos. Mais curioso, o episódio sobre a conversão de Lídia, nos Atos dos Apóstolos, em que o autor conta: «Depois de ter sido batizada, bem como os de sua casa, fez este pedido: “Se me considerais fiel ao Senhor, vinde ficar a minha casa”. E obrigou-nos a isso» (At 16, 15). Verdadeiramente, como se pode dizer que São Paulo era um misógino?!…

Vivemos a «cultura do cancelamento», em que o passado é lido de forma apressada, as estátuas são derrubadas e os gritos de indignação – geralmente, senão sempre – são fruto mais de ignorância do que estudo, conhecimento e análise. Nos últimos dias vimos como agora também se quer cancelar a Bíblia. A «pressa ideológica» assume e rotula rapidamente tudo. Como escreveu a filósofa B. Levet, numa obra que recentemente teve entre nós uma edição: «O pensamento ideológico “não pode aprender nada de novo com a experiência”, nota Hannah Arendt. A narrativa ideológica é um filtro entre o eu e o real. Como Tartufo, possibilita “tudo ver sem nada crer”. Tem um seguro contra o real, contra a sua complexidade, a sua imprevisibilidade, os seus matizes» (Libertem-nos do feminismo, Gradiva, 2021).

A laicidade é algo positivo para a nossa sociedade, se entendida não como exclusão da religião da esfera pública, mas antes como reconhecimento do dado religioso como algo que existe entre as pessoas que compõem a sociedade e que, por isso, tem algo que pode oferecer como contributo para a construção da mesma sociedade. A «laicidade sadia», como chamava Bento XVI. Esta laicidade deve também reconhecer o património religioso que construiu a matriz cultural na qual vivemos e nos movemos. Noutros países, como a «laica França», passagens da Sagrada Escritura são lidas nas escolas como elementos do património cultural comum. Mais recentemente, foi publicado em português o livro de Northrop Frye, O código dos códigos: A Bíblia e a Literatura (Edições 70, 2021), recordando que sem conhecimento da matriz bíblica é impossível aceder ao património cultural literário.

Querer ignorar a Bíblia, ou querer apagá-la enquanto código cultural e ético para a nossa sociedade, só se pode compaginar com motivações de uma sociedade suicida, de uma sociedade que não sabe de onde vem e, pior ainda, não sabe para onde vai. Não se pode seguir por esse caminho, como recordou a nota da Conferência Episcopal Portuguesa: «Os textos não se mudam, mas educam-se os leitores a entendê-los e a atualizá-los. Por exemplo, não se mudam os versos épicos de Camões, porque não correspondem à mentalidade atual e até, em alguns casos, podem causar escândalo. Isso seria cair na arbitrariedade e na ditadura das modas e na imposição da cultura única. É por isso que se estuda Camões nas escolas, para que todos tenham acesso à beleza dos seus versos, dentro dos condicionalismos da sua época.»

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Encontramos em I. Kant a expressão acabada de uma divisão do ser humano, cujas consequências sentimos até aos nossos dias. Quando constrói entre a Natureza e a Liberdade um abismo intransponível, o ser humano está confiado apenas à Liberdade, sem que a Natureza tenha qualquer papel para a compreensão do ser humano. Leva ao «Sou o que quero e me apetece» dos nossos dias, em que nem a determinação biológica, nem qualquer fator histórico pode colocar limites ou condicionar o ser humano. Quem assim quer viver, não sabe de onde vem. O ser humano compreendido como pura liberdade, torna-se um ser profundamente arbitrário. Torna-se assim, também, juiz de tudo e de todos, até do próprio passado e da História, e é incapaz de compreender a História à luz da própria história.

O Cristianismo, em geral, mas de forma muito particular o Catolicismo, não pode ser chamado «Religião do livro». É uma designação que não faz jus à verdade, pura e simplesmente, porque se é verdade que a Sagrada Escritura é fonte para a fé cristã, ela não se encontra sozinha. A fonte da fé cristã é a Escritura e a Tradição, como tão bem sintetizou o II Concílio do Vaticano. Dizer que a fonte da revelação cristã é a Escritura e a Tradição implica que elas se encontram e relacionam profundamente. Ao mesmo tempo, a Igreja Católica amadureceu também o Magistério, como guia fundamental sobre a interpretação dos conteúdos da fé cristã, que sempre convidou os fiéis, em particular os pastores e os teólogos, a usarem da analogia da fé para a interpretação da Escritura e da Tradição. Encontramos no Catecismo da Igreja Católica a expressão mais acabada deste caminho de dois mil anos de história, oração e reflexão, no qual conflui a vida e dedicação de muitos homens e mulheres. Por tudo isto, o Cristianismo não é uma Religião do livro, mas é a Religião onde o livro (Bíblia) tem um papel importante como Revelação, alimento para a oração e a reflexão, mas que os cristãos sempre foram chamados a compreender como livro inspirado: livros escritos por pessoas concretas, inspirados por Deus, ou seja, tocados no seu eu interior pelo Espírito Santo que os conduziu a ver nos acontecimentos e vicissitudes históricos a mão de Deus que conduz o ser humano, mesmo quando este erra e peca. Deus nunca o abandona, e isso é o que encontramos na Bíblia, mesmo que muitas passagens do Antigo Testamento causem alguma má impressão. Deus não criou uma história humana imaculada, mas mostrou como no meio do pecado, dos erros e até por vezes de crimes, a ação divina continua a acontecer.

A polémica em torno da leitura de São Paulo, lida em todas as missas do Domingo, dia 22 de agosto de 2021, e, por isso, também lida nas missas transmitidas pelas televisões, é sintomática de uma sociedade que está em risco de esquecer de onde vem e qual a sua identidade. Ao mesmo tempo, mostra como se tornou tão ignorante que é incapaz de compreender um texto que tenha mais de 140 a 280 caracteres. É também sinal de uma sociedade que se tornou tão intolerante, que é incapaz de compreender que haja pessoas que deixam a sua vida ser guiada e iluminada por tradições religiosas. Ao mesmo tempo, mostra como é necessário relembrar o que somos enquanto sociedade plural e como precisamos crescer enquanto sociedade complexa. Como escreveu D. Innerarity na obra Uma teoria da democracia complexa (Ideias de Ler, 2021): «Um dos nossos principais problemas tem origem precisamente no facto de as sociedades, quando se polarizam em torno de confrontos simples, não darem lugar a processos democráticos de qualidade.»

Diz um ditado chinês que quando alguém aponta para a Lua, o imbecil fica a olhar para o dedo. Foi o que aconteceu na recente polémica: o texto de São Paulo traduz a profunda novidade que o Evangelho trouxe para a sociedade. Como escreveu João Paulo II a respeito da passagem de São Paulo sobre a submissão da mulher: «Todas as razões a favor da “submissão” da mulher ao homem no matrimónio devem ser interpretadas no sentido de uma “submissão recíproca” de ambos “no temor de Cristo”. A medida do verdadeiro amor esponsal encontra a sua fonte mais profunda em Cristo, que é o Esposo da Igreja, sua Esposa.» Muitas vezes uso este texto na preparação dos noivos para o casamento porque aponta para o sentido mais profundo do que é a relação do homem e da mulher no casamento cristão: amar como Cristo ama, até ao ponto de ser necessário morrer na cruz pelo outro. Assim, a «submissão» cristã não é outra coisa que o dom de si ao outro, dar prioridade ao amor, dizer um grande não ao egoísmo e à autossuficiência.